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Informe e Crítica

27 de fev. de 2011

O Imperio do Dinheiro em "Ambição em Alta Voltagem"

"Ambição em Alta Voltagem" de quem criou o título na versão brasileira...

O Imperio do Dinheiro em 
"Ambição em Alta Voltagem"

Nildo Viana


O título do filme no Brasil ficou sendo "Ambição em Alta Voltagem" (Allen e Albert Hughes, EUA, 1995), um título comercial que busca ser atrativo mas que não tem relação com o verdadeiro conteúdo da obra, sendo apenas mais um título problemático (Viana, 2009). Este filme dos Irmãos Hughes abre espaço para refletir sobre várias questões sociais, entre elas o poder do dinheiro, a questão racial, a guerra do Vietnã, etc. O título original é mais fiel ao conteúdo: "Dead Presidents", que pode ser traduzido por "presidentes mortos". Sem dúvida, o título não ajuda a compreender o conteúdo caso não se preste atenção na cena inicial, até mesmo  no caso dos assistentes dos Estados Unidos e mais ainda do Brasil e resto do mundo. A cena inicial mostra várias cédulas de dólares queimando. Claro que muitos sabem que as cédulas possuem as figuras de ex-presidentes dos Estados Unidos, inclusive Abraham Lincoln, o mais conhecido no Brasil devido sua exploração em filmes e desenhos. Os presidentes mortos são as figuras das cédulas e representam o dinheiro e seu caráter mórbido e necrófilo. 

O filme não retrata nenhuma ambição desmedida, como parece indicar o título da versão brasileira, e sim o dilema de alguns personagens, especialmente o personagem principal, Anthony Curtis, que não é parente do famoso ator Tony Curtis, como lhe pergunta um açougueiro e ele demora a entender. Curtis é um jovem que quer fazer "algo diferente" e sua falta de ambição é demonstrada ao preferir ir para a guerra do Vietnã ao invés de ir para a Universidade, como seu irmão, para obter sucesso. A mãe de Curtis fica descontente, mas o pai apoia (serviu ao exército também). Curtis vai para a guerra, e sendo negro, tem um amigo que sempre lhe dizia que aquela era uma guerra de brancos, embora acabe indo também. 

Depois de voltar da guerra se encontra desempregado, com uma filha e esposa para cuidar. Acaba se empregando num açougue e um ex-namorado (durante a guerra) que visita sua namorada e filha enquanto ele estava fora, é o seu grande problema, principalmente quando o açougue fecha e fica novamente desempregado e tem que conviver com a cobrança da mulher, que recebe dinheiro do ex-amante. Isso provoca sua ira e aliança com antigos amigos (um pastor que esteve na guerra e guardava uma cabeça de vietcong como "amuleto de sorte"; dois amigos de antes da ida e que foram com ele e se tornaram viciados em droga - um sendo o único branco do bando, um dono de bar que tinha negócios ilícitos fechados e uma militante do movimento negro radical e irmã de sua esposa) e planeja com eles um assalto a um carro-forte. Na tentativa de assalto, dois dos assaltantes (a militante e o viciado branco) e vários policiais morrem. 

Os quatros que restaram repartem o dinheiro entre si, mas o pastor acaba esbanjando seu dinheiro e sendo descoberto pela polícia, o que leva a todos os demais que encontra o viciado negro morto por overdose e prendem os demais. Curtis é julgado e condenado à prisão perpétua, o que lhe faz jogar uma cadeira no juíz e reclama de ter arriscado a vida e ajudado na guerra por nada (o advogado argumentara, em seu favor, não só isso como sua situação precária de vida, o que o juiz retrucou dizendo que também serviu durante a Segunda Guerra Mundial e que ele envergonhava o exército).

Neste contexto, o dinheiro é a mola mestra do filme, é por causa dele que Curtis resolve assaltar um carro chefe, bem como seus companheiros e é isso que tem valor - no sentido de ser importante, significativo, para os indivíduos de uma sociedade mercantil e coisificada (Viana, 2007). É graças a ele que policiais e assaltantes morrem e outros são destruídos e prejudicados. É o império do dinheiro que diz quem é a pessoa, o seu "valor", como ela vive, suas relações sociais e amorosas, etc. E é ele que gera a criminalidade, destrói vidas, corrompe. Mas o império do dinheiro é expressão de relações sociais, relações capitalistas, que criam uma sociabilidade fundada na competição, mercantilização e burocratização (Viana, 2008), que, por sua vez, gera pobreza, desigualdade, racismo, etc. A sociedade do dinheiro é a sociedade da desumanização e isto o filme mostra bem.

Referências:

VIANA, Nildo. Como Assistir um Filme? Rio de Janeiro, Corifeu, 2009.
VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasilia, Thesaurus, 2007.
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. São Paulo, Escuta, 2008.

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26 de fev. de 2011

A Importância da Cena Final



Abaixo o texto "A Importância da Cena Final",publicado originalmente na Revista Critério.

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A Importância da Cena Final - Nildo Viana

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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo . A Importância da Cena Final. Revista Critério, v. 07, p. 05, 2007.

19 de fev. de 2011

O Cinema Segundo Walter Benjamin


O Cinema segundo Walter Benjamin

Nildo Viana



Walter Benjamin apresentou uma visão do cinema destoante da concepção da maioria dos integrantes da chamada “Escola de Frankfurt”, principalmente Teodor Adorno. Nosso objetivo aqui não é fazer um confronto entre as duas posições e nem confrontar ou comparar as teses benjaminianas com a de outros pensadores, mas tão-somente analisar a concepção deste autor e fazer uma análise crítica dela, o que, eventualmente, poderá nos levar a citar autores com posições distintas.

A concepção benjaminiana de cinema é derivada de sua concepção de meios de comunicação de massas, que ele aborda a partir de sua discussão sobre a “reprodutibilidade técnica” (Benjamin, 1994). Benjamin parte de uma determinada interpretação de Marx para apresentar sua tese fundamental:


“Quando Marx empreendeu a análise do modo de produção capitalista, esse modo de produção ainda estava em seus primórdios. Marx orientou suas investigações de forma a dar-lhes valor de prognósticos. Remontou às relações fundamentais da produção capitalista e, ao descrevê-las, previu o futuro do capitalismo. Concluiu que se podia esperar desse sistema não somente uma exploração crescente do proletariado, mas também, em última análise, a criação de condições para sua própria supressão” (Benjamin, 1994, p. 165).

A citação deixa claro o caráter problemático da interpretação benjaminiana de Marx, passível de inúmeras críticas, inclusive a transformação do autor de O Capital em futurólogo, enquanto que, na verdade, Marx analisou as tendências do desenvolvimento capitalista, através de suas contradições. E é justamente na não percepção das contradições que temos o grande problema da análise adorniana e benjaminiana, tal como colocaremos adiante.

Deixando de lado os limites da interpretação benjaminiana de Marx, passemos para o elemento fundamental que ele extrai da obra deste autor para construir seu edifício analítico do cinema. Aqui temos o problema da interpretação benjaminiana do que significa “criação de condições para sua própria supressão”. É claro que esta tese está em Marx, mas não exatamente desta forma. No entanto, aqui está uma visão de que o capitalismo cria suas condições de supressão, inclusive a tecnologia. Em outras palavras, ele considerava que “o capitalismo lançava as sementes de sua própria destruição, ao criar as condições que possibilitariam sua abolição” (Stam, 2003, p. 84).

Segundo Benjamin, as mudanças no modo de produção demoram para chegar à superestrutura, já que esta se desenvolve mais lentamente. Ele enfatiza a reprodutibilidade técnica para discutir a questão da obra de arte, elemento da superestrutura. Segundo ele:


“Em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitação era praticada por discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão das obras, e finalmente por terceiros, meramente interessados no lucro. Em contraste, a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na história intermitentemente, através de saltos separados por longos intervalos, mas como intensidade crescente” (Benjamin, 1994, p. 166).

Benjamin cita a xilogravura como exemplo que acaba sendo um prenúncio de outras formas mais desenvolvidas, tal  como a litografia, e, posteriormente, a fotografia. O cinema falado, segundo ele, estava “contido virtualmente na fotografia”. A reprodução técnica do som a partir do século 19 e foi se aperfeiçoando até promover “transformações profundas” até conquistar um lugar ao sol no mundo da produção artística.

Este processo destrói a autenticidade da obra de arte. A reprodutibilidade técnica desfaz sua autenticidade, seu caráter único e original. Benjamin relaciona autenticidade e tradição, colocando que a primeira é a quintessência da segunda.


“O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da tradição, que constitui o reverso da crise atual e a renovação da humanidade. Eles se relacionam intimamente com os movimentos de massa, em nossos dias. Seu agente mais poderoso é o cinema” (Benjamin, 1994, p. 168-169).

A destruição da aura, o desvelar do invólucro do objeto, é produto da reprodução técnica, tal como exemplificado pelo cinema.


“Nas obras cinematográficas, a reprodutibilidade técnica do produto não é, como no caso da literatura ou da pintura, uma condição externa para sua difusão maciça. A reprodutibilidade técnica do filme tem seu fundamento imediato na técnica de sua produção. Esta não apenas permite, da forma mais imediata, a difusão em massa da obra cinematográfica, como a torna obrigatória. A difusão se torna obrigatória, porque a produção de um filme é tão cara que um consumidor que poderia, por exemplo, pagar um quadro, não pode mais pagar um filme. O filme é uma criação da coletividade” (Benjamin, 1994, 172).

Assim, cinema e reprodutibilidade técnica são inseparáveis. Tanto em sua produção quanto em sua reprodução, a técnica está presente no cinema. Segundo Benjamin, a discussão sobre se o cinema é arte parte de uma perspectiva superficial, pois não se discute a questão prévia de que “se a invenção da fotografia não havia alterado a própria natureza da arte”.  É a partir destas considerações que Benjamin vai buscar repensar o cinema como arte. Ele parte da comparação entre fotografia e filme para demonstrar o caráter artístico da produção cinematográfica:


“Fotografar um quadro é um modo de reprodução; fotografar num estúdio um acontecimento fictício é outro. No primeiro caso, o objeto reproduzido é uma obra de arte, e a reprodução não o é. Pois o desempenho do fotógrafo manejando sua objetiva tem tão pouco a ver com a arte como o de um maestro regendo uma orquestra sinfônica: na melhor das hipóteses, é um desempenho artístico. O mesmo não ocorre no caso de um estúdio cinematográfico. O objeto reproduzido não é mais uma obra de arte, e a reprodução não o é tampouco, como no caso anterior. Na melhor das hipóteses, a obra de arte surge através da montagem, na qual cada fragmento é a reprodução de um acontecimento que nem constitui em si uma obra de arte, nem engendra uma obra de arte, ao ser filmado” (Benjamin, 1994, p. 178).

Benjamin coloca então que os aspectos não-artísticos reproduzidos no filme se encontram na forma específica que o ator cinematográfico realiza a representação do seu papel. O ator cinematográfico se encontra numa situação e realiza uma prática bastante distinta do ator de teatro. O ator de teatro se encontra diante de um público, enquanto que o ator cinematográfico se apresenta diante de um grupo de especialistas (diretor, produtor, técnicos, etc.) e que possui o direito de intervir. Tal intervenção assume o papel típico da execução de um teste. As cenas são filmadas variadas vezes, sob formas diferentes. O montador irá escolher uma das suas variantes em detrimento de outras. Mas trata-se de um teste diferenciado do que ocorre em outras esferas (profissional, esportiva), pois o ator cinematográfico não está diante do público mas sim de um aparelho (a câmera) e o diretor ocupa um espaço semelhante a de um examinador em um teste profissional.

A auto-alienação expressa na representação do homem no aparelho revela uma “aplicação altamente criadora”. O ator cinematográfico se encontra numa situação de estranheza diante do aparelho e isto pode ser transferido para as telas, podendo ser vista pela massa, que irá controlá-la. A invisibilidade da massa para o ator reforça este controle. Assim, Benjamin coloca sua posição: a arte contemporânea deverá se orientar mais para a reprodutibilidade e menos para a obra original para ser mais eficaz. O uso político do controle da massa sobre o ator ocorrerá com o fim do capitalismo, já que no contexto atual o capital cinematográfico impede tal processo, pois dá um caráter contra-revolucionário a ele, promovendo, inclusive, o “culto do estrelato”.

O passo seguinte de Benjamin é a defesa do “direito de ser filmado”. Tal direito seria de todo mundo e todos devem exigir isto. Ele chega a afirmar que a diferença entre autor e público está em vias de desaparecer. Ele cita o exemplo do escritor. Está aumentando o número de escritores e o leitor já está pronto para se transformar em escritor. A competência literária passa a ter sua base na formação politécnica e não na educação especializada. Isto já está em estágio adiantado no cinema. Benjamin cita o exemplo do cinema russo, no qual o direito de ser filmado já está praticamente concretizado. Na Europa, o capital cinematográfico dificulta e atrasa este processo.

O cinema mantém uma relação indissolúvel com a realidade. Através do aparelho, a câmera, o cinema penetra no âmago da realidade:


“A natureza ilusionística do cinema é de segunda ordem e está no resultado da montagem. Em outras palavras, no estúdio o aparelho impregna tão profundamente o real que o que aparece como realidade ‘pura’, sem o corpo estranho da máquina, é de fato o resultado de um procedimento puramente técnico, isto é, a imagem é filmada por uma câmara disposta num ângulo especial e montada com outras da mesma espécie” (Benjamin, 1994, p. 186).

A descrição cinematográfica da realidade, segundo Benjamin, é, devido a isto, muito mais significativa do que a pictórica para o homem moderno. A reação da massa diante da arte é modificada na sociedade moderna. A reprodutibilidade técnica provoca esta transformação. A massa era retrógrada diante de Picasso mas se torna progressista diante de Chaplin. Ao contrário da pintura, que deveria ser apreciada por uma ou poucas pessoas, o cinema deve ser apreciado por uma coletividade, e as reações dos indivíduos são condicionadas pelo caráter coletivo delas, não somente a soma das reações individuais mas pelo seu controle mútuo.

O cinema tem como função social das mais importantes promover o equilíbrio entre o homem e o aparelho. As imagens provocam efeitos na percepção dos atos cotidianos. Os gestos, incluindo o de pegar uma colher ou um isqueiro, são familiares, mas não sabemos nada sobre as elaborações psíquicas contidas neste processo. No entanto, através da câmera e seus recursos, a montagem pode provocar imersões, emersões, interrupções, isolamentos, extensões, acelerações, ampliações, miniaturizações, abrindo, pela primeira vez, para nós, a “experiência do inconsciente ótico”, assim como a psicanálise revelou o inconsciente pulsional.


“Muitas deformações e estereotipias, transformações e catástrofes que o mundo visual pode sofrer no filme afetam realmente esse mundo nas psicoses, alucinações e sonhos. Desse modo, os procedimentos da câmara correspondem aos procedimentos graças aos quais a percepção coletiva do pública se apropria dos modos de percepção individual do psicótico ou do sonhador. (...). Se levarmos em conta as perigosas tensões que a tecnização, com todas as suas conseqüências, engendrou nas massas – tensões que em estágios críticos assumem um caráter psicótico –, percebemos que essa mesma tecnização abriu a possibilidade de uma imunização contra tais psicoses de massa através de certos filmes, capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de fantasias sadomasoquistas, seu amadurecimento natural e perigoso. (...). A enorme quantidade de episódios grotescos atualmente consumidos no cinema constituem um índice impressionante dos perigos que ameaçam a humanidade, resultantes das repressões que a civilização traz consigo. Os filmes grotescos, dos Estados Unidos, e os filmes de Disney, produzem uma explosão terapêutica do inconsciente” (Benjamin, 1994, p. 190).

O filme com a sucessão de imagens não permite a contemplação, o movimento delas interrompe a associação de idéias. Daí Benjamin extrai o que ele denomina “efeito de choque” do cinema, o que provoca uma “atenção aguda”. O aparelho perceptivo do homem contemporâneo atravessa profundas mudanças, tanto do ponto de vista do indivíduo que enfrenta o tráfego quanto aquele que combate, em escala histórica, a ordem social vigente.

Benjamin passa a contestar a oposição que se faz entre as massas, que buscariam na obra de arte apenas a distração e o conhecedor o recolhimento. A massa, segundo Benjamin, é possui uma nova atitude diante da obra de arte. Com ela, “a quantidade  converteu-se em qualidade”. Benjamin critica a posição contrária esclarecendo o que seria distração e recolhimento:


“A distração e o recolhimento representam um contraste que pode ser assim formulado: quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve, como ocorreu com um pintor chinês, segunda a lenda, ao terminar seu quadro. A massa distraída, pelo contrário, faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo” (Benjamin, 1994, p. 193).

Benjamin diz que a arquitetura é uma obra de arte que é exemplar para discutir a questão da distração. Desde a pré-história a arquitetura está presente com os edifícios, enquanto que outras formas de arte surgiram e desapareceram, fazendo de sua história a mais ampla do que qualquer outra obra de arte. Os edifícios podem ser percebidos tanto pelo uso quanto pela percepção, ou seja, por meios óticos ou por meios táteis. Segundo o modelo do recolhimento, é impossível compreender tal recepção em sua especificidade. Na recepção tátil, não há nada semelhante que na recepção ótica se chama contemplação. A recepção tátil se realiza mais pelo hábito do que pela atenção. O hábito, na arquitetura, determina a recepção ótica, em grande medida. Ela ocorre por uma observação casual de início. Assim, conclui Benjamin, o aparelho perceptivo não pode ser compreendido apenas pela perspectiva ótica, pela contemplação. É preciso perceber, ainda segundo ele, o papel da recepção tátil, através do hábito.

No entanto, acrescenta Benjamin, o distraído pode habituar-se. Quando realizamos certas tarefas de forma distraída é devido ao fato de que elas se tornaram um hábito.


“A recepção através da distração, que se observa crescentemente em todos os domínios da arte e constitui o sintoma de transformações profundas nas estruturas perceptivas, tem no cinema o seu cenário privilegiado. E aqui, onde a coletividade procura a distração, não falta de modo algum a dominante tátil, que rege a reestruturação do sistema perceptivo. É na arquitetura que ela está em seu elemento, de forma mais originária. Mas nada revela mais claramente as violentas tensões de nosso tempo que o fato de que essa dominante tátil prevalece no próprio universo da ótica. É justamente o que acontece no cinema, através do efeito de choque de suas seqüências de imagens. O cinema se revela assim, também desse ponto de vista, o objeto atualmente mais importante daquela ciência da percepção que os gregos chamavam de estética” (Benjamin, 1994, p. 194).

Esta breve exposição da visão benjaminiana do cinema deixa claro o ponto de vista do autor. Ele se distingue das demais posições da chamada Escola de Frankfurt e isto no que se refere especificamente ao problema da cultura e do cinema, embora também em outros pontos, que aqui não nos interessam diretamente. Sua posição diante do cinema e da arte é radicalmente oposta à posição de Adorno e isto envolvia inúmeras outras questões, entre as quais a questão da tecnologia, ressaltado por Benjamin em sua análise da “reprodutibilidade técnica”.


“Benjamin destacou as possibilidades abertas pela tecnologia e as conseqüências positivas desta percepção modificada (especialmente a dessacralização), enquanto que Adorno (...), apontou as conseqüências negativas e as deficiências ali presentes. Para o primeiro, um salto qualitativo para frente; para o segundo, para trás” (Kothe, 1978, p. 37).

Stam também destaca esta oposição entre ambos os autores e vê as origens anteriores na visão do cinema de ambos, os conservadores como Duhamel que tinha posições semelhantes a Adorno e os “apólogos da cultura de massa”, com posições idênticas a de Walter Benjamin (Stam, 2003). A posição de Adorno é marcada por uma visão elitista de arte e que carrega em si alguns equívocos e que possuem o seu par antagônico em Walter Benjamin, que traz no seu bojo uma ingênua idealização da classe trabalhadora (Stam, 2003). Um idealiza “as massas”, o outro as desconsidera. A posição dos dois autores, no entanto, em que pese querer, em certos momentos, se aproximar do marxismo, é claramente não-marxista. Claro que aqui não é o objetivo analisar a relação destes dois autores com o marxismo, mas precisamos comparar a posição de Benjamin com esta teoria, mesmo porque muitos defendem o seu caráter de análise marxista e ele inicia seu texto a partir de uma citação de Marx.

Iremos recapitular as teses benjaminianas sobre cinema para questionar suas conclusões. O primeiro aspecto ressaltado por Benjamin é o fato de que o capitalismo cria as condições de sua própria superação. Quando Marx colocava que a burguesia criava o seu próprio coveiro, estava se referindo ao proletariado enquanto classe social revolucionária e não a tecnologia, embora esta fosse condição de possibilidade do comunismo, mas não em si ou de forma auto-suficiente. O desenvolvimento tecnológico, por si mesmo, não geraria uma nova sociedade e nem deveria ser considerado revolucionário. Isto só é possível destacando a relação entre tecnologia e relações sociais, postura que possui alguns trechos da obra de Marx que parecem confirmar mas que outros trechos e análises mais profundas demonstram o equívoco desta tese.

Aqui está a raiz ideológica de todos os equívocos de Benjamin. A sua tese da reprodutibilidade técnica que rompe com a aura e com a idéia da autenticidade, tem sua fonte neste postulado sobre a tecnologia. Benjamin não percebe que a reprodutibilidade técnica não se dá de forma neutra e que não pode, portanto, ser utilizada por qualquer um em qualquer posição social. A tecnologia se desenvolve tendo por base determinadas relações sociais e de acordo com seu processo de produção e reprodução. Na sociedade capitalista, as relações de produção capitalistas promovem determinado desenvolvimento das forças produtivas (e não um desenvolvimento benéfico e adequado a qualquer relação social).

Embora Marx tenha em determinados trechos de sua obra distinguindo o uso das máquinas e postulado uma certa neutralidade nelas, tal como quando afirma que “a pólvora continua a ser pólvora, quer se empregue para produzir feridas, quer para estancá-las” (Marx, 1989, p. 210), ele também colocou que “a utilização das máquinas é uma das relações do nosso regime econômico contemporâneo” (Marx, 1989a, p. 209), o que quer dizer que o uso da tecnologia está indissoluvelmente ligado ao modo de produção capitalista. Além disso, Marx, a partir de 1863, quase vinte anos depois, complexificou sua posição diante do desenvolvimento da maquinaria (Marx, 1989b). Porém, independentemente das teses de Marx, a tecnologia é produzida socialmente e para reproduzir as relações sociais que estão em sua base e, portanto, não é emancipadora por si mesma.

Mas, independente disso, a interpretação benjaminiana de Marx comete o equívoco de considerar que a tecnologia é potencialmente revolucionária, e, por conseguinte, o cinema também o seria. O mesmo que se pode dizer, na perspectiva de Marx, sobre a tecnologia, se pode dizer do proletariado: no seu estágio atual, antes de desenvolver sua consciência revolucionária através das lutas de classes, ele é uma “classe em-si” e, portanto, sem consciência revolucionária. O endeusamento messiânico das massas por Benjamin revela apenas um romantismo que provoca uma cegueira em relação às relações sociais reais.

Aqui também se encontra a chave para se compreender as abstrações metafísicas de Benjamin. Ele não analisa o cinema concretamente e basta ver que apenas cita alguns cineastas em algumas passagens, sem se debruçar mais detalhadamente, Charles Chaplin e uma passagem sobre o cinema russo, além de citar Abel Gance (não sua produção cinematográfica, mas seus escritos sobre cinema). Para quem assume uma visão tão apaixonada pelo cinema e defende seu caráter progressista, o mínimo que se poderia esperar seria uma análise, ou pelo menos algumas referências, sobre a história do cinema, uma análise de suas produções, sobre seu caráter, as obras cinematográficas que comprovam suas afirmações, etc.

Aqui também encontramos as razões para outro equívoco benjaminiano, que é a suposta destruição da aura pelo advento do cinema. A “aura” não é destruída pela reprodutibilidade técnica mas apenas muda de forma. A própria concepção de aura em Benjamin é questionável e padece de um certo anacronismo, já confunde arte moderna e formas pré-capitalistas de “arte”, que não são “arte propriamente dita”, tal como coloca Marx (1986). É justamente na sociedade moderna que algo parecido (e somente parecido, pois a abordagem benjaminiana é muito abstrata e fundada em comparações com épocas passadas ao invés de se basear nas relações sociais concretas) com o que Benjamin denomina aura é o que o sociólogo Pierre Bourdieu denominou illusio, ou fetichismo da arte (Bourdieu, 1996). Porém, Bourdieu nota seu nascimento justamente na sociedade moderna, derivado do processo de especialização gerada pela divisão social do trabalho, tal  como antes dele Marx e Weber (Viana, 1999). No entanto, as teses destes autores se fundam nas relações sociais concretas e não em abstrações metafísicas. Vários colocaram justamente o contrário a Benjamin (Stam, 2003), pois o surgimento do estrelato, para citar um exemplo, revela isto.

Além disso, o suposto direito de todos serem filmados é mais uma fantasia de Benjamin do que uma realidade. Sem dúvida, ele cita o cinema russo no qual isto ocorre e se tivesse vivido um pouco mais teria o exemplo do neo-realismo cinematográfico italiano, exceções derivadas de condições sociais históricas bem precisas. São justamente as condições sociais que Benjamin deixa de lado, ou o que Prokop (1986) denomina “condições estruturais”.

Aqui se revela um problema metodológico em Walter Benjamin, a ausência da categoria de totalidade. Benjamin isola o cinema e neste isolamento fantástico deriva seu caráter revolucionário por si mesmo. O processo de produção do filme, que ele cita, inclusive colocando o alto valor monetário envolvido nele, mas desconsidera. Cita o capital cinematográfico, mas desconhece e desconsidera seus efeitos sobre o filme, a começar da busca incessante de lucro, o que provoca o nascimento dos filmes comerciais e que a produção deve estar voltada para o sucesso de bilheteria em detrimento de uma mensagem crítica, contestadora, etc. É por isso que Benjamin não discute o conteúdo dos filmes mas apenas seu caráter revolucionário. Ele não consegue perceber o caráter do capital cinematográfico, marcado pela acumulação de capital e, por conseguinte, pelo processo de centralização e concentração do capital, isto é, pela formação dos oligopólios, muito bem analisada por Prokop (1986). Por isso ele pode postular um cinema como tecnologia revolucionária e desconsiderar os agentes concretos, reais, históricos, os seres humanos que realizam a produção cinematográfica e, por conseguinte, seus objetivos, valores, cultura, etc. e a técnica ganha primazia sobre os seres humanos. Assim, ele realiza o fetichismo da tecnologia. Sob este último aspecto, Adorno já havia levantado várias críticas:


“Em uma série de respostas epistolares aos ensaios de Benjamin, o teórico crítico da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, acusou-o de um utopismo tecnológico que a um só tempo fetichizava a técnica e ignorava o seu alienante funcionamento social na realidade. Adorno foi bastante cético com respeito às afirmações de Benjamin sobre as possibilidades emancipatórias dos novos meios e formas culturais. A celebração benjaminiana do cinema como um veículo para a consciência revolucionária, para Adorno, ingenuamente idealizava a classe trabalhadora e suas aspirações pretensamente revolucionárias” (Stam, 2003, p. 86).

Sem dúvida, apesar de sua posição elitista e determinista, Adorno, aqui, vai mais longe do que Benjamin. O cinema não é potencialmente revolucionário, pois está envolvido até o pescoço com a sociedade capitalista, é mais um elemento para sua reprodução e permanência, do ponto de vista cultural, e, do ponto de vista geral, é apenas mais um espaço de ação de indivíduos especializados, profissionais, produzindo mais uma mercadoria cultural, o filme. É claro que, ao contrário do que pensa Adorno, existem brechas, contradições, e, por conseguinte, o cinema não é apenas conservador, possui potencialidade contestadora, mas marginal e que manifesta através destas frestas abertas por um processo social contraditório, marcado pela luta de classes e seus efeitos no conjunto das relações sociais.

A discussão sobre o caráter artístico ou não do cinema é apenas reflexo das ideologias cinematográficas da época, pois estas pretendiam fornecer o status de arte para o cinema, revelando valores de determinado grupo social, aqueles envolvidos na produção cinematográfica. O próprio Benjamin sucumbiu a idéia de “aura” que ele mesmo criticava, pois sua noção de arte como algo sublime, e o cinema seria sua expressão mais acabada, revela apenas sua excessiva valoração deste fenômeno social.

Não deixa de ser cômica a sua tese de que a massa controla o ator cinematográfico. Esta tese extremamente extravagante não tem nenhuma base real, concreta. Quem controla o ator cinematográfico é o diretor e a equipe de produção. A “massa” só vê o ator depois do filme pronto e, por conseguinte, a fantasiosa idéia de que ela controla o ator é mais uma criação fictícia de Benjamin. O controle “subjetivo” feito pelas massas já que o ator está diante de um aparelho (a câmera) é uma dedução de Benjamin que não se sabe de onde ele a tirou (porquanto não fez entrevistas com os atores, os únicos que poderiam confirmar isto), e tal visão do ator é algo pouco provável, mas que sem uma pesquisa não se ultrapassa o nível hipotético.

A sua reflexão sobre a apresentação da auto-alienação não pode ser atribuída a uma percepção do público, pois este não é um intérprete benjaminiano. Benjamin parte de uma visão homogeneizadora do público e não discute como este possui a percepção do que ocorre nas telas, que é sua forma de acesso ao filme. Em primeiro lugar, trabalha com a idéia metafísica de que o público é composto pelas “massas”, e nem percebe o caráter problemático e ideológico desta expressão. Depois santifica romanticamente estas massas e o passo seguinte é projetar sua análise pessoal como sendo a visão típica das próprias “massas”. Ele se esquece de que, assim como o filme e seus produtores, não são um todo homogêneo, da mesma forma não são as “massas”. A percepção crítica de um filme depende do nível do desenvolvimento da consciência das diversas classes sociais existentes na sociedade e, em geral, “as idéias dominantes são as idéias da classe dominante” e, por conseguinte, a criticidade ou percepção da alienação que Benjamin vê nas “massas” é algo raro, que somente em sua ideologia se torna possível, principalmente devido ao fato que tal criticidade do filme é também inexistente na maioria dos casos.

A idéia benjaminiana de que o cinema penetra no âmago da realidade é outro elemento problemático. Em primeiro lugar, seria necessário discutir o que se entende por “realidade”. Não se pode dizer que se trata de uma concepção empiricista, pois assim isto nada iria querer dizer, embora Benjamim, ao falar de “real” e “realidade” que são “impregnados pelo aparelho” deixa transparecer tal postulado. Mas ele vai além disto ao colocar o papel da montagem, no qual o meramente empírico é transformado, provocando imersões, emersões, interrupções, isolamentos, etc. e com isso abre para o público, pela primeira vez, a experiência do “inconsciente ótico”. Aqui temos duas questões para discutir: a questão da montagem e a do inconsciente ótico.

A questão da montagem teve várias abordagens no interior das discussões cinematográficas no início do século 20. Benjamin não cita nenhuma delas e por isso fica difícil identificar sua concepção de montagem. No entanto, sua referência elogiosa ao cinema russo e sua passagem que aborda o papel da montagem o aproxima da concepção de montagem de Sergei Eisenstein. Eisenstein elaborou sua tese da montagem a partir da influência da psicologia de Pavlov, o ideólogo dos “reflexos condicionados”. Eisenstein se inspirava na psicologia pavloviana e sua tese de que “seria possível controlar e mesmo determinar reações conscientes e, à primeira vista, voluntárias, mercê de estímulos e condicionamentos nervosos apropriados” (Ramos, 1982, p. 23). A partir deste pressuposto, Eisenstein vão erigir um conjunto de procedimentos voltados para várias formas de montagens. Dentre estas formas de montagem se destaca a montagem intelectual, na qual, segundo Ramos, não entra em “consideração a cultura do espectador no seu processo de relacionação/compreensão de um filme” (Ramos, 1982, p. 25). Ele desconsidera a cultura anterior do público, que é fundamental para entender sua recepção e interpretação do filme, bem como as divisões sociais no seu interior, o que é posicionamento semelhante ao de Benjamin.

A outra questão se refere ao “inconsciente ótico”. Ele compara este suposto inconsciente com o que ele chama “inconsciente pulsional” da psicanálise. O inconsciente, na perspectiva freudiana e na maioria das tendências psicanalíticas, é um conceito ligado aos desejos reprimidos e se refere à totalidade da experiência humana. O recalcamento é fundamental para se explicar o inconsciente, pois sem aquele, este não existe. Um tal inconsciente ótico é apenas mais uma invenção benjaminiana abstrata, sem nenhum referente material na vida real. Tanto é que ele nem se desdobrou para explicar tal fenômeno, que seria, caso existisse concretamente, de suma importância. É possível pensar que o “inconsciente ótico” seria um “sonho coletivo” produzido pela montagem cinematográfica, mas isto seria algo pouco provável, pois a intenção do cineasta e sua montagem não coincidem, na maioria das vezes, com o do público, que realiza a interpretação e a partir de sua cultura e posição social. Neste caso, apesar de tão equivocado como nos outros, o termo “inconsciente ótico” nada esclarece, apenas obscurece. Não é uma questão ótica, embora acessível pelos olhar do público em relação às imagens do filme. Também não é “inconsciente”, pois é um processo da percepção e não da totalidade da mente humana.

Na verdade, a montagem não penetra no âmago da realidade, apenas reorganiza esta realidade e na maioria das vezes de forma ilusória, de acordo com as idéias, valores, interesses, dos quais os seus produtores são portadores.

Mais problemática ainda é sua afirmação de que os “filmes grotescos” permitem uma apropriação coletiva dos modos de percepção individual do sonhador ou do psicótico e pode produzir “uma explosão terapêutica do inconsciente”. Esta é uma forma de justificar sua apologia do cinema no caso dos filmes grotescos, muito mais constantes do que os filmes de Chaplin e do cinema russo. Do ponto de vista psicanalítico, é possível se pensar que os filmes violentos fazem as pessoas descarregarem sua agressividade de forma imaginária, o que teria efeito de sublimação. No entanto, isto não atinge a todas as pessoas da mesma forma, e o neurótico ou psicótico pode apenas ter um incentivo para concretizar os seus desejos ocultos. Mas, independentemente disto, é preciso não só realizar análise psicanalítica dos filmes mas também dos seus efeitos conscientes, tal como a possível banalização da violência e da agressividade. Uma visão unilateral, tal como a de Benjamin, ajuda mais a ofuscar a análise do cinema do que contribuir para o seu desenvolvimento.

A discussão abstrato-metafísica de Benjamin sobre a distração e o recolhimento, que segundo alguns seriam as formas de percepção do filme pelas massas e pelo conhecedor, respectivamente, é apenas mais um tijolo deste edifício ideológico construído por ele. Não se trata de “distração” e “recolhimento” e sim de evasão e reflexão. Sem dúvida, não apenas Benjamin utiliza distração e sua diferença para evasão é pequena. Mas distração significa sair de algo, que pode ser tanto sair da realidade para se refugiar no filme quanto sair do filme para se atentar à realidade. Sendo assim, a distração seria mais oposta à concentração do que ao “recolhimento” ou reflexão. A evasão significa, por sua vez, significa um desvio, uma fuga, que, no caso, só pode ser da realidade para o filme. O recolhimento ou a contemplação também não se aplica ao caso do público diante do filme. Não se trata de contemplar um edifício, um filme ou seja lá o que for, e sim refletir sobre ele e sobre suas relações com o mundo circundante, seu significado. A única forma de realizar isto é através da reflexão. Quem assisti um filme como evasão foge da realidade e se dissolve no filme, perdendo a capacidade de reflexão para fora do que está lá, e este é o procedimento da maioria do público. Quem assisti um filme como reflexão, busca realizar um processo de análise do seu conteúdo, de sua mensagem, de suas relações com o mundo circundante. Quem realiza a evasão não são necessariamente “as massas”, mesmo porque elas não são homogêneas e quem realiza a reflexão nem sempre são os “conhecedores”, pois além de muitos destes não ultrapassarem o nível da evasão (tal como muitos produtores e outros profissionais da área do cinema), eles também não são homogêneos e nem sempre estão interessados em ultrapassar a aparência dos fenômenos.

Enfim, a abordagem benjaminiana do cinema é bastante problemática por causa de seus pressupostos intelectuais, pois ao invés de abordar a realidade concreta da produção fílmica, ele se refugia num conjunto de abstrações metafísicas que obscurecem muito mais do que esclarecem o fenômeno do cinema. Neste sentido, é preciso ir além de Benjamin e buscar a constituição de uma teoria do cinema em bases reais, concretas, sociais. Este é o caminho que temos para trilhar.

Referências Bibliográficas:

Benjamin, Walter. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. in: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1994.

Bourdieu, Pierre. As Regras da Arte. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

Kothe, Flávio. Benjamin e Adorno: Confrontos. São Paulo, Ática, 1978.

Marx, K. A Miséria da Filosofia. 2ª edição, São Paulo, Global, 1989a.

Marx, K. Tecnologia e Revolução Industrial. In: Fernandes, Florestan (org.). Marx-Engels. História. São Paulo, Ática, 1989b.

Prokop, Dieter. O Papel da Sociologia do Filme no Monopólio Internacional. In: Filho, Ciro Marcondes (org.). Dieter Prokop. São Paulo, Ática, 1986.

Ramos, Jorge Leitão. Sergei Eisenstein. Lisboa, Horizonte, 1982.

Stam, Robert. Introdução à Teoria do Cinema. Campinas, Papirus, 2003.

Viana, Nildo. A Concepção de Arte em Marx e Weber. Revista Pós – Revista Brasiliense de Pós-Graduação em Ciências Sociais. ICS/UnB, ano III, no 01, 1999.
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Artigo publicado originalmente na Revista Espaço Acadêmico, Ano VI, n. 66, novembro de 2006.

12 de fev. de 2011

O Público e o Privado no Edifício Master


O Público e o Privado no Edifício Master
Nildo Viana

O Documentário dirigido por Eduardo Coutinho, Edifício Master, possui um caráter social muito interessante. Ele mostra entrevistas com pessoas que falam de sua vida cotidiana. Porém, por detrás da mera narração individual da vida cotidiana é possível perceber o espaço público e o social presente nestas narrativas sem que isso seja imediatamente perceptível. Nosso objetivo é fazer uma análise, de cunho sociológico, sobre o material deste documentário. Isto quer dizer que abordaremos não os aspectos técnicos e formais, e sim a manifestação de relações sociais nesta obra cinematográfica.

De Piaget a Pinochet

O Edifício Master fica no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, capital. Ele está localizado a um quarteirão da praia, tem 276 apartamentos conjugados distribuídos em 12 andares. Cada andar possui 23 apartamentos. Na época em que o documentário foi produzido, havia um total de 500 moradores. A equipe alugou um apartamento por um mês e filmou durante uma semana. O documentário não é sobre a administração do prédio, mas isso aparece em alguns momentos. Sérgio, o síndico reeleito, disse que seu objetivo era tornar o prédio “bonito, digno, decente” e “conseguiu”. “Eu uso muito Piaget, quando não dá certo, parto para Pinochet”, diz ele, revelando que sua estratégia é educativa e, quando esta falha, passa a ser repressiva. A afirmação deixa claro o caráter ditatorial que a administração assume ocasionalmente. A existência de uma ditadura revela a ocorrência de conflitos. O Edifício Master é um palco de conflitos sociais.

A entrevistada Vera diz que os conflitos eram bem maiores, havendo casos de suicídio, mortes e prostituição. Com a nova administração, o prédio tornou-se familiar. Maria do Céu narra as noitadas que existiam na portaria e os conflitos que ocorriam. No fundo, o que as entrevistas revelam é um espaço conflituoso, tanto na esfera privada (apartamento) quanto na esfera pública, e nesta os conflitos são mais intensos e envolvem até mesmo a polícia, sempre solicitada naquela época, segundo a entrevistada. A nova situação diminui os conflitos. Este é o caso de muitos edifícios nas grandes cidades, marcados por conflitos mais ou menos intensos, vivências dispares e pelo papel da administração de gerir o turbilhão social cercado por concreto.


O Público no Privado

As entrevistas mostram narrativas de inúmeras pessoas falando de sua vida privada. O relato da solidão é realizado por Esther, Daniela, Henrique e, em alguns outros casos, em que fica subentendida. Isto revela tão-somente o isolamento das grandes cidades, mesmo quando as pessoas moram lado ao lado. Nestas cidades, a separação e o isolamento provocam o desconhecimento dos próprios vizinhos. O indivíduo passa a viver socialmente nas relações de trabalho, estudo e na própria moradia, mas não no círculo mais amplo do prédio e da vizinhança. A especialização e a divisão social do trabalho criam verdadeiros abismos entre os indivíduos, gerando gostos, concepções e valores distintos, que dificultam a comunicação. Outro elemento que pode ser revelado pela análise é que a esfera privada foi constituída socialmente. A solidão é um produto social. Vizinhos existem, são fisicamente acessíveis, mas não há comunicação. Em muitos casos, não há desejo de comunicação. Daniela, por exemplo, diz que pode ser “feio”, mas fica contente em subir e descer sozinha do elevador, não vendo ou sendo vista por ninguém. Daniela não sabe que este sentimento é mais comum do que ela pensa, não sendo mera característica individual.

Outro exemplo da produção social da esfera privada é visível nos relatos do passado dos entrevistados, principalmente no que se refere à família, mostrando como que as pessoas foram parar naquele lugar, os seus dilemas e traumas, bem como a busca do emprego, da sobrevivência, provocando a mudança de local de moradia. A família e o trabalho assumem grande importância nas narrativas justamente por serem determinantes do passado e/ou do presente. Mas a rua também faz parte dos relatos, sendo geralmente apresentada como local de lazer ou de manifestação da violência.

A família pode ser superprotetora, ausente, repressiva. Nos relatos, estas três possibilidades, entre outras, estão dadas. O indivíduo entrevistado que cita a família foi constituído em parte a partir destas relações familiares e de outras relações sociais, tal como os demais indivíduos que a compõem, bem como seus pais e assim sucessivamente. A idéia comum de que a família é a responsável única pela formação dos indivíduos ou que é a “célula” da sociedade, se revela equivocada por não perceber que ela mesma foi produzida socialmente.

O trabalho, por sua vez, pode ser uma busca, um refúgio, uma necessidade, um aspecto marcante na vida das pessoas. A pessoa trabalhadora pode ser um camelô, porteiro, professora, uma prostituta, um balconista, técnico de futebol, entre outras possibilidades. Para Maria Pia, “não existe pobreza” e se existe pobre é porque “não quer trabalhar”. Esta visão que reproduz a concepção do trabalho como aquele que “dignifica o homem” – mesmo se baseado na exploração e na alienação, ou, como diz Marx, fazendo o indivíduo fugir dele como o diabo foge da cruz – é reproduzida e manifesta a identificação de uma empregada doméstica com o seu trabalho alienado.

A Arte como Sublimação

Daniela diz: “Eu tenho problemas de neurose e sociofobia”. Ela coloca que gosta de escrever, pois funciona como “válvula de escape”. Em termos psicanalíticos, poderíamos dizer que o ato de escrever poesia ou pintar um quadro pode significar uma sublimação ou uma satisfação substituta. No Edifício Master, locus do isolamento e da solidão de uma sociedade individualista, conflituosa e repressiva, muitos usam a arte como forma de realização, de satisfação substituta, de sublimação. E, mais do que isso, revelam uma riqueza artística que muitas vezes nem sequer percebem, ou então se submetem aos cânones dos componentes do “campo artístico”, segundo expressão do sociólogo Bourdieu, e desconhecem o valor artístico de suas produções. Daniela, novamente, é exemplar, ao afirmar que seu quadro “A Floresta do Meu Desespero”, que trata, segundo ela, de paranóia e desamor, é “esteticamente ridículo”. Na verdade, nada tem de ridículo e possui uma imensa riqueza artística, de muito maior valor do que diversas obras consagradas. O simbolismo, que ela diz lhe atingir profundamente, apresenta a floresta como espaço ambíguo, no qual há arborização, oxigênio, aventura, enigma, mas também terror, tal como nas histórias infantis. O quadro mostra “os olhares da selva de pedra”, expressando “muita paranóia”, “invasão”, vigilância. No fundo, a floresta é a metáfora da cidade tal como percebida por Daniela.

Outros mostram grande envolvimento com a arte, como Nadir e Henrique. Alguns possuem um envolvimento mais intenso, através da produção artística ou do trabalho profissional com arte. Este é o caso de Fernando José, ator de várias novelas e filmes, Suze que foi dançarina, Eugênia que é escritora e poetisa. Há também os quadros de Laudicéia e a música de Paulo Mata. O caso de Jasson é um dos mais interessantes, principalmente o samba que ele compôs e foi gravado nos anos 1960, “Favela”. Um samba que fala da luta diária e do sofrimento dos favelados, mas abre espaço para a esperança. O favelado “sofre de dia, mas samba de noite e é feliz”, situação análoga ao dos moradores-artistas do Edifício Master.

Opressão e Utopia

Alguns entrevistados mostram seu descontentamento com a cidade, especialmente com Copacabana. Esther diz que “Copacabana é violenta”; Maria Regina diz que “não gosta de Copacabana”. Daniela compõe uma frase que merece ser citada, no momento em que afirma que a aglomeração típica de Copacabana a deixa estressada: “Não sei se são pessoas demais ou calçadas muito estreitas ou se é uma fusão desagradável dos dois elementos”. Marcelo, por sua vez, diz que a diversidade de pessoas no edifício não incomoda, mas a “concentração é opressiva” e as ruas são marcadas por crianças cheirando cola, prostitutas, michês, traficantes. No fundo, o que este e outros entrevistados mostram é o caráter opressivo do aglomerado urbano, em um contexto desfavorável, ampliando ainda mais a opressão.
Mas resta a persistência da utopia e ela, embora não assumindo caráter coletivo e amplo, mostra o desejo do novo. Se a “solidão machuca muito” (Esther), se a violência está presente no cotidiano, se os males cercam os moradores de todos os lados, há também o desejo de mudança. Fabiana, por exemplo, conta uma tentativa de superar o isolamento. Ela afirma que sempre ouvia a voz de uma criança que mora no andar de cima e sua mãe chamando-a pelo nome, Tainá. Passou a querer conhecê-la e falar com ela. Também revelou o desejo, ao ver crianças brincando no prédio, de perguntar se alguma se chamava Tainá, mas não o fez “por vergonha”. Neste caso, o desejo de superação do isolamento existe. Alessandra, outra entrevistada, diz que não gosta de trabalhar e gostaria de ficar na “mordomia”, que seria “acordar tarde e brincar com a filha”. Ela diz que quem morre está melhor, pois para de sofrer. O desejo de fugir da opressão e a vontade de viver uma vida diferente, se manifesta no que gostaria de fazer e na própria idéia de morte. A arte também é outra forma de sair da realidade, mostrando o desejo de outra realidade. A festa de aniversário que os vizinhos fazem para Geicy é outra forma de romper com o isolamento.

A riqueza das narrativas é visível. Outras interpretações poderiam ser feitas, outros aspectos poderiam ser colocados, bem como outras narrativas, tais como as de Carlos, Rita, Lúcia, Luiz, Roberto, Cristina, Dalva, etc. As interpretações destas narrativas são derivadas do encontro ou desencontro do intérprete com os entrevistados. Esta é a mensagem do samba “Favela”: “só vendo a lua de perto da janela, a gente vê como ela é bela”. A proximidade é fundamental e a lua é metáfora para favela, tal como se vê em outro trecho: “só quem vive na favela, reconhece os encantos dela”. A proximidade pode mostrar que não há encenação, mas drama real, sentido na carne de cada um. A vida no Edifício Master manifesta o problema social e humano geral: “Eu sei o que eles vivem, pois eu também vivo lá”.

_________________________
Artigo publicado originalmente em:

VIANA, Nildo . O Público e o Privado no Edifício Master. Sociologia, Ciência e Vida, v. 01, p. 72-75, 2007.

Para ver uma versão ampliada e não publicada, por questão de tamanho, clique aqui.

8 de fev. de 2011

A Utopia no Universo Fictício de Léo Joannon

Imagem de Abertura do filme "Utopia"

A Utopia no Universo Fictício de Léo Joannon

Nildo Viana

O texto abaixo foi publicado originalmente na Revista Espaço Acadêmico (clique aqui para acessar). A versão abaixo apresenta fotogramas que ajudam a compreender o texto. É possível aumentar o tamanho do texto indo no final e clicando no sinal de mais (+).

A Utopia no Universo Fictício de Léo Joannon - Nildo Viana

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  • 6 de fev. de 2011

    "Teoria Mortal": O Ideologema que Mata



    "Teoria Mortal":
    O Ideologema que Mata

    Nildo Viana

    O filme "Teoria Mortal" (Kill Theory, Chris Moore, EUA, 2009), trailer abaixo, tem como ponto de partida um ideologema (ou uma "teoria", tal como é colocado no título do filme). A importância do ideologema no referido filme faz dele um excelente caso para analisar a reprodução fílmica de ideologemas, bem como para outros tipos de ficção.

    Um ideologema é um fragmento de uma ideologia, isolado e reproduzido sem a totalidade da ideologia que lhe deu origem. A ideologia é uma falsa consciência sistematizada, ou seja, é um pensamento falso, ilusório, que, no entanto, é complexto, sistemático, e assume várias formas, tais como a de filosofia, teologia, ciência, etc.[1]. Nas obras de arte e universos ficcionais, devido suas especificidades, geralmente não se reproduz uma ideologia com toda sua complexidade e totalidade, além do fato de que a grande maioria dos produtores de universos ficcionais não possuem domínio das ideologias que possuem ressonâncias fragmentárias em sua consciência. Geralmente, os ideologemas estão embutidos no universo ficcional e não são facilmente perceptíveis, assim como os valores, sentimentos, inconsciente, etc. Por isso o filme "Teoria Mortal" acaba assumindo grande importância ao tomar como ponto de partida e motivação do psicopata um ideologema. Obviamente, é sua motivação consciente, pois, obviamente, são seus problemas psíquicos que estão na origem do ato, sendo o ideologema apenas uma racionalização e auto-justificativa.

    Qual ideologema é exposto no filme? O filme inicia com a história do assassino. Ele, em suas conversas com o psicólogo, trava um debate sobre o que o levou à prisão. Ele escalava uma montanha com amigos e, em certa altura, teve que decidir entre salvar sua vida cortando a corda que o ligava aos demais, o que os faria cair e morrer, ou continuar e ser solidário, e provavelmente morrer junto com eles. Após realizar este ato e ser preso, ele afirma que todos fazem isso. Ao ser libertado, o psicólogo pergunta se ele ainda acredita nisso e a resposta é que não.

    A cena muda radicalmente, passando para jovens que foram para uma casa de verão para comemorar o fato de terem terminado a graduação. Porém, logo aparece o assassino, que busca colocá-los na mesma situação que ele teve para comprovar sua tese (ideologema) de que todos os seres humanos lutam pela sobrevivência e, seguindo seus instintos, podem matar até os amigos. A casa é totalmente isolada e não havia comunicação e ele exige que eles matem uns aos outros e o sobrevivente que restar até as 06 horas da manhã, sairá vivo, mas, se nesse horário ainda estiver mais de um vivo, ele matará a todos. A trama do filme gira em torno disso, mostrando as tentativas de fuga, conflitos, etc.


    O ideologema em questão é fragmento comum de várias ideologias que apontam para o determinismo biológico, mas tem como base a ideologia darwinista. A luta pela sobrevivência e a sobrevivência dos mais aptos [2]. A competição e a luta intraespécie é naturalizada e reforçada por essa ideologia e pela sua vulgarização e popularização, na qual determinados ideologemas podem ser identificados em frases, tal como "luta pela vida", "lei do mais forte", etc.

    A princípio, o ideologema parece ser confirmado, pois os grandes amigos, que no início da noite festejavam e o filho do dono da casa afirmou que amava a todos, logo entram em conflito, e alguns buscam se salvar independentemente dos demais, até que, no final, começam a entrar no jogo do assassino e tentam matar os amigos para escapar da morte. Porém, o final do filme acaba sendo marcado por um ato de solidariedade, o que refuta o ideologema. Nesse sentido, o filme não é ideologêmico, pois realiza a crítica a um ideologema. E ainda mostra que um ideologema, tal como as ideologias, é mobilizador, produz ação, interfere na realidade [3].



    [1] - Sobre ideologia, confira: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo, Hucitec, 2002; VIANA, Nildo. Cérebro e Ideologia. Uma Crítica ao Determinismo Cerebral. Jundiaí, Paco Editorial, 2010.

    [2] - Sobre darwinismo, confira: VIANA, Nildo. Darwin Nu. Revista Espaço Acadêmico. num. 95, Abril de 2009. Para acessá-lo, clique aqui.

    [3] - Para uma análise mais desenvolvida do caráter mobilizador da ideologia, veja o texto acima citado sobre "Cérebro e Ideologia".

    4 de fev. de 2011

    "Coraline" ou a Concepção Adultocêntrica da Infância

    Coraline ou a Concepção Adultocêntrica da Infância



    Por Nildo Viana







    O filme Coraline e o Mundo Secreto, Henry Selick (EUA, 2009), mostra uma garotinha mal humorada, com pais sempre ocupados, vizinhos estranhos, e isso provoca o seu tédio e a busca de algo para fazer, já que a solidão e a falta de sentido tomam conta de sua vida.

    A aparência e a intenção dos produtores parecia ser mostrar o mundo infantil da perspectiva de uma criança. A protagonista é uma menina que descobre um "mundo secreto" e que ninguém acredita. Neste mundo secreto, Coraline teria outra mãe e outro pai, que eram radicalmente diferentes dos seus verdadeiros pais, realizando os seus desejos, lhe dando atenção, produzindo o seu quarto como ela queria, um jardim com a imagem do seu rosto visto de forma panorâmica, um pai brincalhão, comida deliciosa feita pela mãe (ao contrário da comida intragável feita pelo pai verdadeiro). O único elemento desagradável é que nesse mundo as pessoas não possuem olhos e sim botões em seu lugar.

    Esse feliz mundo secreto revela um segredo: ele é apenas uma armadilha para prender Coraline por uma entidade misteriosa que quer roubar seu amor, sua alma e seus olhos. A trama passa por este processo de tédio, descoberta do outro mundo, encantamento, desencantamento e luta para fugir dele. No final, Coraline descobre o seu erro e busca se livrar deste mundo e acaba fazendo isso, e volta para o seu lar, no mesmo mundo que lhe entediava, mas que agora está diferente, seus pais estão mais atenciosos, os vizinhos menos estranhos, etc.

    Assim, o segredo do filme Coraline não é o mundo secreto que esta encontra, nem o seu próprio mundo e sim a concepção adultocêntrica por detrás de toda esta produção fictícia. Um inocente conto - que alguns podem até considerar assustador em certos aspectos - revela, no fundo, um conjunto de valores, sentimentos, ideologemas, que despertam emoções, reflexões, etc., e tudo apontando para um determinado sentido.

    A grande mensagem do filme, no final das contas, é que as crianças devem ser pacientes, suportar a ausência dos pais, a falta de sentido e de atividades significativas na vida, a solidão, pois, fazendo isso, mais cedo ou mais tarde, serão recompensadas, tal como ocorre no final do filme, quando os pais super-ocupados conseguem a publicação de um catálogo de jardinagem e conseguem dinheiro para comprar as luvas que ela queria, ter tempo para brincar e cuidar de jardim. Sair desse caminho de suportar a realidade em que vive é "perigoso", palavra que aparece no filme justamente para se referir ao mundo secreto, que é, no fundo, o mundo dos desejos de Coraline. Ceder aos desejos, mesmo na imaginação, eis o “pecado”, ou eis o recado da sociedade repressiva. Aprender a aceitar as imposições da sociedade repressiva, desde a infância, pois caso contrário, suas utopias, desejos, mundos imaginários, poderão lhe destruir, fazer perder sua alma (significaria ir para o inferno? Ou seja, temos o velho tema cristão de “perder a alma”, roubada pelo diabo), perder os olhos (a cegueira, a imaginação é perigosa, pois “cega”, faz não “ver a realidade”), o “amor” (os pais e seu suposto amor, no qual o mundo do trabalho os absorve). Aceitar tudo isso para um dia ser recompensado, tal como os cristãos podem agüentar o mundo de miséria e depois ser recompensado no “reino dos céus”. Um mundo maravilhoso existe, mas só no futuro, seja o do além vida dos cristãos, seja no dia da recompensa no filme Coraline e o Mundo Secreto.

    Enfim, Coraline e o Mundo Secreto é um filme infantil, mas feito por adultos. Daí a concepção adultocêntrica que lhe perpassa. Aceitar a realidade, ou seja, o princípio de realidade contra o princípio do prazer, para utilizar linguagem psicanalítica, é o fundamental, o que gera o tom moralista e até ameaçador, pois ninguém quer ter os olhos trocados por botões. Uma mensagem repressiva de uma sociedade repressiva, que desde a tenra infância tem que fazer terrorismo com as crianças. “Cresça para ter seu mundo”, mas quando crescer, será como os adultos e aí já não o irá desejar, irá estar muito ocupado com o trabalho, com o Estado e com a família e as Coralines perturbadoras.

    2 de fev. de 2011

    Garrincha, Alegria do Povo

    Garrincha, o Craque das Pernas Tortas

    Garrinha, Alegria do Povo

    Nildo Viana

    O documentário Garrincha, Alegria do Povo (Joaquim Pedro de Andrade, Brasil, 1962) narra aspectos da vida do jogador de futebol, Mané Garrincha, cujo nome verdadeiro era Manuel Francisco dos Santos, considerado por muitos como o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Este documentário, em cópia salva em 2006, foi transmitido pelo Canal Futura, semana passada, no "Cine Conhecimento". A cópia não é de boa qualidade, o que dificulta a assistência.

    O filme tem uma narrativa truncada. Além de alternar imagens de jogos, vida privada, etc., o que não compromete muito, apresenta uma dificuldade que é não seguir a cronologia, pois às vezes mostra cenas da Copa de 1962 e depois volta para 1958 e outras épocas. Os recursos existentes na época já possibilitavam uma melhor montagem do material gravado. Porém, o grande problema é que o documentário é deficitário em matéria de informações. Estas são escassas, apenas uma rápida entrevista com Garrincha e diversas informações, como sua origem operária, que não são detalhadas ou aprofundadas, inclusive o seu destino posterior ao seu relativo sucesso. A sua participação no Botafogo (RJ) e Seleção Brasileira foi apresentada de forma muito breve.

    A introdução da discussão sobre o atrativo do futebol é muito pobre, colocando apenas duas concepções (a de que a bola de futebol lembra o seio materno e a de que o futebol é uma compensação para a frustração) e que não acrescenta muito à narrativa, fazendo parte de seu caráter truncado.

    O mérito do documentário é mostrar um pouco de Garrincha, seus valores e concepções, bem antagônico ao seu concorrente ao título de melhor jogador de futebol de todos os tempos, Pelé, pois não demonstra nenhuma altivez, bem como demonstrou manter suas relações de classe de origem. Assim, fica aquém do merecimento de Garrincha, o craque das pernas tortas. Porém, merecidamente, foram produzidos outros dois documentários sobre ele. Resta uma avaliação destes, o que faremos no futuro.