O Estudante de Praga:
Expressionismo e Crítica Social no primeiro Filme da História do Cinema
Nildo Viana
“O Estudante de Praga”
(Paul Wegener e Stellan Rye, Alemanha, 1913), é o primeiro filme da história do
cinema[1]. E pode ser considerado,
simultaneamente, como o primeiro filme expressionista[2]. O filme se destaca pelo
universo ficcional criado, que possui algumas fontes de inspiração e tematiza a
questão do duplo e da venda da alma, sendo a forma pela qual efetiva uma
crítica social da sociedade moderna.
O filme narra a história de Balduin, um jovem esgrimista e
pobre, que se apaixona por uma mulher das classes superiores. O tema do homem
pobre apaixonado pela mulher rica aparece, mas não se trata do foco principal
do filme e nem de um filme romântico. Na era do cinema mudo, o filme aborda a
questão do “duplo” e da venda da alma. O amor de Balduin mostra é o que
justifica ele aceitar vender o seu reflexo no espelho em troca de dinheiro.
Porém, o reflexo ganha vida própria após sua venda e passa a infernizar a vida
de Balduin. O “outro eu” de Balduin é malvado e seus crimes são atribuídos a
ele. O desfecho do filme mostra o resultado de vender a alma em troca de
dinheiro, a morte.
Assim, para os assistentes desatentos, o filme pode parecer
apenas uma narrativa relativamente trivial, mistura da tematização do amor romântico
e de terror (alguns, inclusive, o consideram, equivocadamente, um filme de
terror)[3]. No entanto, a questão social
é o elemento fundamental do filme. O que ele mostra é um indivíduo pobre que ama
uma mulher de outra classe social. A classe social é uma barreira que torna a efetivação
do seu amor impossível. Para isso, ele precisa enriquecer. Essa é a motivação
para Balduin vender sua alma a Scapinelli e a solução de seu problema. A
crítica social se revela não apenas na divisão de classes, mas também na
tentativa de ascensão e enriquecimento, o que significa a sua autodestruição. O
tema recorrente da venda da alma ao diabo significa que o vendedor se
mercantiliza, vende o que tem de mais importante (a sua alma, a sua essência, e
o que seria, na concepção cristã, “eterna”) em troca de dinheiro ou qualquer
outra coisa (poder, por exemplo), o que significa sua corrupção e degradação. A
autodestruição de sua essência realizada com a venda do seu reflexo é completada
com sua autodestruição física. O dinheiro aparentemente permite realizar o
sonho de conquistar a mulher amada, mas revela a corrupção e destruição e a
perda não só daquela pela qual se apaixonou como também de si mesmo.
Tendo em vista o ano em que foi produzido e que foi o
primeiro filme da história do cinema (indo muito além do experimentalismo que
existia anteriormente), trata-se de um filme relativamente simples, mas que
traz uma crítica social e profundidade que poucos terão durante alguns anos e
somente o desenvolvimento posterior do expressionismo permitirá obras
semelhantes ou superiores (VIANA, 2009). O
Gabinete do Doutor Galigari, outro filme expressionista, e a obra cinematográfica
de Griffith, dão sequencia e permitem o aperfeiçoamento formal da produção fílmica.
Em síntese, O Estudante
de Praga é um clássico do cinema por ter sido o primeiro filme no sentido
mais adequado desse termo, por ter sido o primeiro filme expressionista, e,
ainda, o primeiro filme contendo crítica social. O seu valor histórico, é,
portanto, inquestionável. E por isso é um filme que merece ser assistido e
recordado, bem como as refilmagens posteriores. E o seu conteúdo e sua temática
continuam atuais e a crítica social apresentada continua válido, inclusive
podendo ser estendida não mais apenas a casos individuais, mas a toda
humanidade, que está “vendendo seu reflexo” em troca de dinheiro e sua
autodestruição é uma possibilidade e uma tendência, se não alterar o seu trajeto.
Logo, é um filme excepcional pela época e por manter atualidade e que ganha
mais importância ainda com o crescente empobrecimento da produção fílmica, cada
vez mais superficial.
Referências
Eisner, Lotte. A Tela Demoníaca. As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo.
2ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002.
Kracauer, Siegfried. De Caligari a Hitler. Uma História
Psicológica do Cinema Alemão. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.
VIANA, Nildo. A Concepção Materialista da História do
Cinema. Porto Alegre, Asterisco, 2009.
VIANA, Nildo. Cinema e Mensagem. Análise e
Assimilação. Porto Alegre: Asterisco, 2012.
[1] Antes dele existiam obras
experimentais, com pequena duração, esboço de um universo ficcional que é extremamente
precário, etc. O Estudante de Praga é
o primeiro que desenvolve um universo ficcional de forma mais aprofundada e por
isso sua duração também é maior do que as tentativas anteriores. Há também,
nesse filme, desenvolvimentos técnicos, entre outros elementos diferenciadores
dos demais. Alguns afirmam que o filme de D. Griffith, O Nascimento de uma Nação, de 1915, 3 anos após, seria o primeiro
filme. Não há nenhum motivo para desconsiderar O Estudante de Praga como um
filme no sentido completo do termo e, portanto, colocar uma obra posterior como
sendo o primeiro filme. O Estudante de Praga foi produzido em 1912, mas parece
que foi para as telas do cinema no ano seguinte, pois a maioria das informações
sobre o filme colocam a data de 1913. É preciso esclarecer, ainda, que estamos
abordando o primeiro filme e não a primeira filmagem (que muitos afirmam ser de
1885, a exposição de uma filmagem dos irmãos Lumiére, embora, erroneamente,
afirmando que foi o “primeiro filme”), ou seja, qualquer gravação que tenha
sido realizada usando o cinematógrafo para isso. A respeito do conceito de
filme existe bibliografia que explica sua diferença em relação a qualquer
filmagem (VIANA, 2012), o que também o diferencia do documentário.
[2] Discordamos das
interpretações do expressionismo no cinema de Kracauer (1988) e Eisner (2002),
pois cometem vários equívocos ao desconhecer o verdadeiro caráter do movimento
artístico expressionista (VIANA, 2012).
[3] Os filmes de terror só surgem
nos anos 1930, pois é quando surgem os gêneros cinematográficos.
Um comentário:
Olá Nildo,
Você diz no seu texto que "antes dele [O Estudante de Praga] existiam obras experimentais, com pequena duração, esboço de um universo ficcional que é extremamente precário, etc. O Estudante de Praga é o primeiro que desenvolve um universo ficcional de forma mais aprofundada e por isso sua duração também é maior do que as tentativas anteriores."
Entendi dessa citação que a duração do filme O Estudante de Praga, em torno de 90 minutos, é um dos critérios para coloca-lo como o "primeiro filme da história". No entanto, pergunto: qual seria a duração mínima para definir o que é um filme? Essa dúvida deixou uma brecha para mim. Fiquei pensando que mesmo um filme com condições técnicas adequadas, universo ficcional bem desenvolvido, mas com apenas 10 minutos ou 20 minutos, por exemplo, poderia ser considerado um filme. O que pensa sobre isso?
Grato pela atenção.
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