Rádio Germinal

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Informe e Crítica

25 de mai. de 2009


A Maldição da Cegueira em “A Cor do Paraíso”

Nildo Viana

A nossa sociedade é uma “civilização da imagem”. Não apenas através dos meios de comunicação como a televisão, o cinema, as revistas em quadrinhos, revistas em geral, a imagem é um mecanismo de comunicação hegemônico. A proeminência da imagem é derivada da supervaloração da visão, que é o sentido humano mais utilizado e que se torna o modelo exemplar que comanda a racionalidade ocidental. A chamada “teoria do conhecimento” é fundada no modelo da visão. É por isso que existe o predomínio de expressões como “ponto de vista”, “observação”, etc. A audição e os demais sentidos pouco participam das metáforas das concepções sobre o saber humano ou o saber científico, mais especificamente. Assim, é comum se ler textos sobre o “lado oculto” ou a “face oculta” de determinado fenômeno ou sobre seu caráter invisível, mas dificilmente se encontra algum texto que aborde o caráter inaudível ou intangível de algum fenômeno. Isto coloca em questão a situação dos cegos na sociedade da imagem. O problema da relação entre cinema e cegueira é bastante complexo e nos limitaremos aqui a analisar o filme A Cor do Paraíso, que tem um menino cego como personagem principal. A partir deste filme podemos colocar em discussão a civilização da imagem e o problema da cegueira no seu interior.


A Cor do Paraíso (Majid Majidi, Irã, 1999), como todo filme, passa uma mensagem. Não iremos analisar a mensagem intencional deste filme, ou seja, aqui não iremos buscar descobrir o seu significado original, pois para fazer isto teríamos que realizar uma pesquisa complexa, que envolveria o processo de produção do filme, as concepções do diretor, etc. O nosso objetivo aqui é atribuir uma significação ao filme e assim chegar a uma mensagem não-intencional repassada por ele. Sem dúvida, essa mensagem inintencional pode coincidir com o significado original do filme, mas esta possibilidade não pode aqui ser trabalhada, devido ao motivo aludido anteriormente.


Notamos no filme uma narrativa que focaliza o menino cego e seu pai. O enredo expressa o conflito pai-filho, cuja origem está no preconceito do pai em relação ao filho cego. Esta oposição permeia toda a narrativa e vai se desdobrando de tal forma que o tema da cegueira acaba revelando uma dupla cegueira: a cegueira no sentido literal da palavra e a cegueira num sentido figurativo.


A cegueira no sentido literal é a do menino cego e se expressa como falta de visão, isto é, impossibilidade de utilizar um dos sentidos humanos. A cegueira no sentido figurativo é a do pai do menino e se caracteriza pela falta de percepção da realidade, a incapacidade de “ver”, ou melhor, de ter consciência das relações sociais que cercam este indivíduo.


A falta de visão do menino cego é compensada pela percepção do mundo pela sensibilidade, tato, audição e referenciais intelectuais (tal como o braile, que ele utiliza em seus contatos táteis com flores, folhas, etc.). Ele consegue se mover bem no interior das relações sociais e lugares em que vive. O seu desenvolvimento intelectual, exemplificado quando surpreende a todos na escola de suas irmãs, por ler em braile mais rápido e acertadamente do que o outro menino que fazia a leitura, bem como sua percepção da relação problemática com o pai, tal como se percebe no fato dele não presenteá-lo, mas tão-somente a sua avó e irmãs.


Em contraste, temos a outra cegueira, que é a do pai. Este demonstra uma falta de percepção da realidade social que é a raiz do conflito com o filho cego. Esta falta de percepção não é produto da incapacidade natural ou da maldade inata, como poderia apressadamente ser sugerido por quem ao invés de aprofundar a análise prefere ficar na superficialidade ou nos modelos abstrato-metafísicos. A base de sua falta de percepção se encontra no preconceito contra o menino por ser cego (e isto é demonstrado durante todo o filme, desde o início que ele chega em seu vilarejo e evita os lugares em que teria quem entrar em contato com outras pessoas). Além do preconceito, os valores do pai, tal como individualismo e sua ânsia por dinheiro são outros elementos que dificultam o desenvolvimento de sua consciência da realidade. Quando ele cobra de sua mãe e lamenta sua situação por ter um filho cego e perdido a esposa, explícita seu individualismo e valoração do dinheiro.


Esta incapacidade de percepção da realidade social provoca várias conseqüências, tal como a auto-destruição, que pode ser exemplificada na perda da mãe e do filho e na não realização do casamento, bem como na destruição do outro, a morte do filho. Assim, temos, de um lado, a cegueira da visão traz dificuldades e parcialmente superadas. O problema maior é que tais dificuldades são ampliadas por determinadas relações sociais. As relações sociais capitalistas, geradoras de preconceito, individualismo, competição, conflito, etc., e que promovem as diferenças físicas a material para preconceito. De outro lado, temos a cegueira da percepção que traz o preconceito, destrutividade e auto-destruição. Esta é a maldição da cegueira, o resultado de uma consciência limitada, que tem conseqüências nefastas, quer exista ou não consciência disto.



Neste processo o que ocorre é que a consciência coisificada do pai gera a destruição do filho e de outras pessoas, sobrando para ele, além do sofrimento da perda, o sentimento de culpa. Este é um fenômeno que ocorre sob múltiplas formas na sociedade moderna e o filme nos mostra, não pela mera observação do filme mas pela reflexão, que a cor do paraíso não pode ser “vista” pelos olhos.




Artigo publicado originalmente no Jornal Opção.

7 de mai. de 2009

A Utopia no Universo Ficcional de Léo Joannon

http://www.espacoacademico.com.br/096/96esp_viana.htm


A Utopia no universo ficcional de Léo Joannon

Nildo Viana

“As utopias não são mais que verdades prematuras”
Lamartine

A utopia pode ser compreendida como um projeto de uma sociedade futura no qual se realiza a felicidade humana. Ela pressupõe um momento negativo e um momento afirmativo. O momento negativo consiste na crítica da sociedade existente e o momento afirmativo se revela no projeto de uma nova sociedade. A utopia, sendo um projeto, é um sonho, um plano, um desejo, voltado para o futuro. Utopia e futuro são inseparáveis. Pensar a utopia é pensar um futuro radicalmente diferente do presente. A utopia pode se manifestar enquanto ficção ou enquanto proposta política concreta. No presente artigo focalizaremos a manifestação da utopia em um filme de Léo Joannon, que expressa um universo fictício cujo tema principal é o sonho de uma sociedade radicalmente diferente.
A primeira manifestação mais elaborada de utopia ocorreu com a obra de Thomas Morus (1980). Em A Utopia, Morus realiza uma crítica da sociedade inglesa de sua época na primeira parte e descreve uma ilha chamada Utopia, criando este nome, e cuja organização social seria oposta à primeira. O momento negativo e o afirmativo estão presentes na estrutura da obra, bem como o desejo de sua realização, pois tal como Morus termina a obra, “aspiro, mais do que espero” (Morus, 1980, p. 155). Assim, “um estado de espírito é utópico quando está em estado de incongruência com o estado de realidade no qual ocorre” (Mannheim, 1986, p. 216).
Porém, a utopia não é desejada por todos, ela é desejada apenas por aqueles que estão insatisfeitos com a sociedade existente e cuja insatisfação assuma uma certa radicalidade. A utopia concreta, ou seja, realizável, é uma “consciência antecipadora” (Bloch, 2005) quando possui agentes concretos, reais, para sua realização, tal como apontado por Marx. Para Marx, o projeto de transformação social é interesse do proletariado, que não apenas aspira como tem o potencial de concretizar a constituição de uma nova sociedade, o “autogoverno dos produtores” (Marx, 1986). A insatisfação atinge a todas as classes na sociedade burguesa, inclusive a própria burguesia, mas esta “se sente à vontade em sua alienação”, pois sabe que é dela que retira sua força e poder (Marx, 1979). O proletariado, no entanto, é a própria negação da sociedade burguesa, e, por conseguinte, é o agente da realização da utopia (embora Marx não use esta palavra).
Para Ernst Bloch, o grande teórico da utopia, esse projeto de nova sociedade se manifesta nas múltiplas vivências humanas, inclusive na arte. Este é o caso da leitura, pois “quanto mais cinzento o cotidiana, tanto mais coisas coloridas se lêem” (Bloch, 2005, p. 397). Citando Pudovkin, cineasta russo, Bloch diz que o cinema usa a realidade para criar “outra realidade”. A arte é uma expressão figurativa da realidade e se manifesta sob diversas perspectivas de classe (Viana, 2007). Neste contexto, as obras de arte que manifestam a perspectiva do proletariado podem ser utópicas. O filme, devido suas determinações, é a menos utópica das artes, mas carrega em si elementos utópicos e também produz utopias.
A obra de Thomas Morus era uma manifestação utópica sobre a forma de ficção. Outras obras fictícias também eram utópicas, tal como A Cidade do Sol, de Campanella (1984), entre outras. Na produção cinematográfica isto é muito mais raro. Poucos filmes manifestaram utopias. E muitas vezes com ambigüidades, tal como A Praia, Danny Boyle (EUA, 1999). O mais comum é a manifestação de previsões sombrias para a sociedade do futuro, sendo mais ucronias do que utopias [1]. Este é o caso de filmes como 1984, Michael Radford (Inglaterra, 1984); Rebelião no Século 21, Charles Band (EUA, 1990); THX 1138, George Lucas (EUA, 1971); Matrix, Andy e Larry Wachowski (EUA, 1999), entre inúmeros outros. A razão de ser deste fenômeno está no próprio caráter da produção fílmica, coletiva e com custos elevados, o que produz a supremacia do capital cinematográfico em sua produção e, para este, não interessa a utopia. Além disso, aqueles que produzem obras cinematográficas (diretores, roteiristas, etc.) não estão entre os setores desprivilegiados da sociedade e sim aos setores privilegiados. Além disso, o risco de uma descrição de uma futura sociedade sem conflitos, competição e outros elementos característicos da sociedade moderna correria o sério risco de fracasso de bilheteria e reconhecimento. Apenas através de uma enorme criatividade o filme não seria considerado desinteressante até para os assistentes potencialmente ou conscientemente utópicos.
Porém, apesar destes obstáculos e devido às contradições do capital cinematográfico e idiossincrasias dos agentes de produção fílmica, algumas vezes a utopia apareceu nas telas de cinema. Este é o caso do filme Utopia, Leo Joannon (1951) [2]. Obviamente, que tal tema teve que aparecer sob a forma de comédia e tendo como estrelas principais Oliver Hardy e Stanley Laurel, mais conhecidos como o Gordo e o Magro. O filme é uma expressão figurativa da realidade, e, portanto, remete a ela, seja realizando sua reafirmação ou sua negação. Porém, a reprodução fílmica da realidade, por mais conservadora que seja, acaba mostrando ela, mesmo a contragosto. A reprodução fílmica da realidade expressa uma perspectiva e, além disso, mostra de determinada forma a realidade social e, assim, pode possibilitar reflexões que vão além do próprio filme.
O filme começa mostrando o sonho de uma outra sociedade sem as mazelas da sociedade atual. Afinal, “quem nunca sonhou em conhecer um paraíso”, diz a legenda inicial do filme. Este é o tema do filme, o sonho de um lugar paradisíaco, um lugar sem os problemas que nos defrontamos na nossa sociedade. Porém, só tem sentido haver sonho com outra sociedade no interior da atual sociedade e através de sua recusa. Esta recusa da sociedade moderna, capitalista, se apresenta em vários momentos do filme, tal como quando os personagens mostram suas motivações para querer fugir deste mundo ou então se mostra a situação na qual se encontravam, ou, ainda, no início, quando os protagonistas vão receber sua herança (de um deles, Stan Laurel) e são enganados por advogados desonestos.
A cena cômica mostra as trapalhadas de Oliver Hardy e Stan Laurel e chega o momento de solicitar a herança. Três grandes pacotes de dinheiro são apresentados, mas, paulatinamente vão sendo retirados pelos advogados, para pagar os impostos, taxas, multas, honorários. Os advogados dizem que já calcularam tudo para “economizar tempo”. A linguagem dos advogados revela a lógica capitalista do cálculo racional do tempo e do dinheiro e também a competição e valores dominantes, que fazem com que eles não tenham pudor em enganar dois inocentes herdeiros. Restam poucas notas no final das contas. Os advogados, no entanto, consolam o herdeiro dizendo que há ainda uma ilha e um iate.
Eis que os protagonistas partem e gastam seus últimos centavos, o que restou da herança, com a taxa da doca e impostos, ficando sem dinheiro nenhum. Depois de mais algumas trapalhadas, os dois partem de barco rumo à ilha herdada. Outros personagens são apresentados, tal como Antoine, que não consegue entrar em nenhum país por não ter passaporte (e não tem passaporte por não conseguir entrar em nenhum país...), produto da irracionalidade da burocracia moderna. O diálogo entre o homem sem passaporte e o representante da lei é, simultaneamente, cômico e revelador.
O outro personagem é um imigrante que busca ir para a Itália, seu país de origem, mas não tem dinheiro para comprar a passagem. Este personagem entra clandestinamente no pequeno barco de Laurel e Hardy e o homem sem passaporte é indicado como mecânico pelo capitão de outro barco. No alto mar, depois outras tantas trapalhadas, os protagonistas descobrem que o mecânico é apenas um cozinheiro e que há um clandestino. Neste momento, os personagens demonstram seu descontentamento e seus sonhos. A viagem para a ilha é como “cabular aula”, ou seja, possui a sensação de liberdade. O desejo de liberdade em contraposição à imposição escolar, algo que seria uma “delícia”, é reforçado por outras comparações com aspectos da sociedade moderna, além da escola. A escola aqui aparece como metáfora da sociedade. A idéia de “matar aula” expressa a fuga de uma instituição repressiva, com suas imposições, e a afirmação de que todos estão “matando aula”, mais ou menos, revela que eles fogem da sociedade repressiva. Hardy questiona o que Giovanni, o clandestino, cabula e assim todos mostram sua motivação e apresentam aspectos da sociedade moderna que recusam. Giovanni diz que está “cabulando” o mundo, “todos sempre me dizem o que fazer e como fazer”. Laurel e Hardy dizem que cabulam os impostos e Antoine diz que “o mundo todo pode ser o país de um homem”, “mas para mim as portas estão trancadas”.
Os personagens se livram dos impostos, da burocracia, da nacionalidade. Imaginam uma ilha com palmeiras e flores, até a tempestade atingir o pequeno barco e depois de muitas peripécias, os personagens desembarcam num atol. Neste, começam a sobreviver e rompem com as hierarquias, já que Hardy comandava tudo até desembarcarem no atol, e Antoine passa a exigir que ele acenda o fogo e Giovanni limpe o peixe.
Na hora da refeição, Hardy lê para os demais um livro que estava no barco: Robinson Crusoé. Eles começam a organizar a produção e graças à existência de água abundante, puderam realizar o processo de produção e reprodução da vida material, mesmo usando técnicas agrícolas rudimentares, ironicamente chamadas de “modernas” no filme.
A ilha teria se tornado um “paraíso”. Mas faltava algo nesse paraíso: Eva. E é neste momento que um novo personagem aparece: Cherie L’Amour. Ela acaba de passar em um teste para ser cantora na boate Cacatua, a mais importante de Papete (Haiti), no mesmo dia do seu casamento com o Tenente Jack Frazer. Este é informado por ela da aprovação no teste e ele lhe censura, pois esperava “devoção total” da futura esposa e a discussão se torna cada vez mais intensa, já que ela argumenta que ele fica até 10 meses fora devido o trabalho.
Nesta cena, um outro aspecto negativo da sociedade moderna é apresentado: o casamento e a opressão feminina. O casamento não se concretiza e Cherie foge em um navio e acaba indo parar no atol K. A sua chegada produz novas ações cômicas dos personagens que buscam impressioná-la, mas esta parte se encerra com a chegada do navio do Tenente Jack Frazer, cuja missão seria mapear a ilha e ao encontra Cherie, tenta convencê-la, sem sucesso, de voltar. Porém, a descoberta de urânio na ilha marca uma mudança no rumo da história. A ilha sendo rica em urânio seria cobiçada por diversas nações. Eis que aparece o problema a qual nação pertence a ilha. Frazer pergunta quem desembarcou primeiro na ilha, pois isto determinaria a que país pertence a ilha. Os quatro habitantes dizem que a ilha pertence a eles, o que Frazer concorda, pois eles seriam os proprietários, mas a ilha tem que ter um país. E pertencendo a um determinado país, terá que respeitar as leis dele, tal como a lei de imigração, impostos, comércio, ou seja, tudo do que eles fugiam. Eles pensam em dizer que os quatro desceram juntos, mas Laurel diz que não se deve mentir e Hardy, espertamente, concorda, pois o primeiro a descer foi justamente Antoine, o homem sem nacionalidade. Isto promove uma confusão completa e se cria uma comissão internacional para definir a qual nação pertence o “Atol K”. Para evitar isto, os personagens resolvem criar um governo para salvar a ilha. Um “governo bem pequeno” e cuja constituição forma um regime com poucas leis, sem passaportes, sem prisões, sem impostos. A recusa da sociedade moderna fica ainda mais explícita com o que Hardy acrescenta ao final [3]: “vou acrescentar: sem leis e sem dinheiro”.
Eles escolhem Hardy como “presidente” e os demais, com exceção de Laurel, que ficou como “o povo”, formam o gabinete. Porém, um país sem leis, sem exigência de passaporte, entre outras características, não só se torna muito atrativo como também permite que qualquer um possa entrar nele. A imprensa divulga que “Crusoelândia libera imigração” e é “uma ilha sem leis”. Isso faz com que uma multidão se mude para a ilha e a transformam radicalmente.
Neste processo, a ilha sem lei acaba atraindo pessoas de todos os tipos e exploração de urânio. Isso logo promove confusões. Um dos novos habitantes da ilha cria uma confusão dizendo que quer Cherie e isto promove uma reunião dos membros do “governo” que resolve mudar as regras do jogo, constituindo leis, ordem e impostos.
Estas mudanças provocam uma reação da população e comandados por Alecto, o criador da confusão, que se torna o novo presidente, eles são condenados à forca. Cherie é poupada devido ao interesse de Alecto e consegue pedir ajuda para o Tenente Frazer, bem como tenta ajudar na fuga de seus amigos. Na hora do enforcamento, depois de uma tentativa de fuga mal sucedida, uma tempestade começa e logo o atol desaparece com a mesma rapidez com que havia aparecido, fazendo todos fugirem com os barcos, menos os descobridores da ilha, que conseguem flutuar com a madeira que era o suporte para o enforcamento. O Tenente Frazer chega e resgata os cinco.
Após isto, há o retorno à vida antiga e Cherie se casa com Frazer, reproduzindo o conflito entre ambos, Giovanni consegue voltar para a Itália, onde ao invés de “construir palácios de mármore” passará o resto da vida fazendo cercas e Antoine tenta entrar em um país usando a estratégia de entrar numa jaula de animal para conseguir isso, tal como no início do filme no qual entrou numa jaula de macacos, e acaba sendo devorado por um leão.
Assim, o final do filme mostra o fim do belo sonho utópico dos personagens. O casamento com suas contradições, o trabalho desgastante e repetitivo, a morte dos mais pobres e sem nacionalidade. O modo de vida anterior é restaurado para os personagens e seus problemas permanecem. Aqui se mostra o fim de um sonho e a continuação de um pesadelo. Porém, ainda restava uma esperança: Laurel e Hardy são levados para sua ilha, onde eles pensavam que seus problemas haviam acabado e que ninguém mais iria mandar neles, o que revela a preocupação com as relações sociais da modernidade. Porém, o novo sonho logo se desfaz, pois a ilha foi tomada pelo governo, por “falta de pagamento de impostos” e até os suprimentos doados por Frazer são levados devido à multa pelo atraso do pagamento dos impostos. O final do filme mostra o fim definitivo do sonho utópico de uma vida sob outras relações sociais. Laurel e Hardy perdem a ilha e terão que se reintegrar na sociedade capitalista, tal com os demais personagens.
O filme, apesar disso, pode ser considerado utópico e não apenas um filme que tematiza a utopia. Isto tem sentido se notarmos que mesmo após o fim do sonho, há a reafirmação da crítica da sociedade capitalista, que produz relações conflituosas e opressão (casamento de Cherie e Frazer), o trabalho alienado (Giovanni), a morte por não ter nenhuma chance graças até mesmo à falta de nacionalidade (Antoine) e perda da ilha para o governo (Laurel e Hardy).
A recusa da sociedade capitalista está presente em todo o filme e sua capacidade de destruir os sonhos utópicos, pois foi justamente a invasão de Crusoelândia e o governo que impediram a manutenção de novas relações sociais. Sem dúvida, o final é pessimista, já que a utopia não se realiza, mas também é crítico, já que mostra o governo como aquele que impede sua realização.
Desta forma, o filme apresenta o momento negativo, a crítica da sociedade capitalista, realizada na tela pelos setores mais desfavorecidos da população, e o momento afirmativo, embora incipiente, através da idéia de liberdade e cooperação. A utopia do Atol K é uma utopia abstrata que mostra a necessidade das utopias enquanto reinar a insatisfação com a sociedade presente.
Porém, é possível extrair um significado mais profundo em todo este processo. A utopia que fracassa no filme de Joannon é aquela que Bloch denomina “utopia abstrata”, ou seja, aquela que não apresenta os meios de concretização. O Atol K é apenas um atol, isolado do mundo e, após emergir, é habitado por seres humanos reais, histórico-concretos. O pequeno grupo inicial manifestava um sonho utópico que logo começou a desmoronar quando a população de outras localidades se encaminhou para lá. A recusa da sociedade moderna expressa na ação dos quatro personagens foi superada pela população que aportou na ilha e levando consigo a mentalidade dominante com o conjunto de valores, idéias e sentimentos típicos da sociedade capitalista, bem como seus interesses, tal como o da exploração do urânio.
A sociedade circundante fez Crusoelândia se corromper e nesse processo se mostra que a transformação social, a autogestão social ou o comunismo, não pode ser uma ilha isolada, pois esta pode ser reintegrada na sociedade capitalista a qualquer momento, pois esta a cerca com o mercado, o Estado, a mentalidade e cultura dominantes, etc. A utopia é uma necessidade humana enquanto os seres humanos viverem numa sociedade repressiva, mas ela tem que ser totalizante, ou seja, abarcar o conjunto das relações sociais e da sociedade, além das fronteiras dos limitados Estados-Nações, se tornando mundial (Decouflé, 1976).
Por fim, podemos dizer que o filme de Léo Joannon é uma expressão utópica que revela a negação do presente indesejado e afirmação de um futuro desejável. Como todo filme, ele é um fenômeno social que manifesta o social (Viana, 2009) e por isso manifesta também os sonhos e desejos dos seres humanos. Mas, parafraseando Hegel, não basta desejar, é preciso saber desejar. Saber desejar a utopia é justamente transformar a utopia abstrata em utopia concreta. Porém, sempre as utopias abstratas antecedem as utopias concretas, pois estas últimas não nascem da cabeça dos intelectuais ou de aventureiros, e sim das lutas sociais concretas das classes exploradas e grupos oprimidos e é por isso, por possuir agentes reais e concretos, que ela é realizável. O filme de Léo Joannon mostra um momento necessário, o da utopia abstrata, e suas limitações, ponto de partida para se passar para a utopia concreta e por isso é uma obra de grande valor.

Referências
Bloch, Ernst. O Princípio Esperança. Rio de Janeiro, Contraponto, 2005.
Campanella, T. A Cidade do Sol. Rio de Janeiro, Ediouro, 1984.
Decouflé, André. Sociologia das Revoluções. Lisboa, Europa-América, 1976.
Mannheim, Karl. Ideologia e Utopia. 4ª edição, Rio de Janeiro, Guanabara, 1986.
Marx, Karl e Engels, Friedrich. A Sagrada Família. Lisboa, Presença, 1979.
Marx, Karl. A Guerra Civil na França. São Paulo, Global, 1986.
Morus, Thomas. A Utopia. Rio de Janeiro, Ediouro, 1980.
Viana, Nildo. A Esfera Artística. Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. Porto Alegre, Zouk, 2007.
__________Como Assistir um Filme? Rio de Janeiro, Corifeu, 2009.



[1] Aqui ucronia tem um significado diferente do que muitos atribuem, sendo o exato oposto da utopia. A utopia é o não-lugar que nega a sociedade existente e propõe uma nova sociedade, enquanto que a ucronia apresenta o futuro, o “novo” como sombrio, seja por ser uma metáfora da sociedade atual, seja por prever que a sociedade atual irá promover algo pior do que ela mesma (Viana, 2009).
[2] O filme também ficou conhecido como “Atoll K” (título utilizado na Itália) e “Ilha de Robinson Crusoé” e, no Brasil, como “Ilha da Bagunça” e “O Paraíso dos Malandros”, entre outros nomes.
[3] Claro que isto constitui uma contradição, pois se no início se coloca “poucas leis” e a constituição é formada por leis, então o item “sem leis” entra em contradição com tudo que estava colocado anteriormente. De qualquer forma, ao colocar “sem leis” e “sem dinheiro”, há uma recusa simultânea do capital e do Estado, ou seja, embora de forma não refletida e aprofundada.

O artigo acima é sobre o filme Utopia, Léo Joannon (França/Itália, 1951).