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Informe e Crítica

12 de fev. de 2011

O Público e o Privado no Edifício Master


O Público e o Privado no Edifício Master
Nildo Viana

O Documentário dirigido por Eduardo Coutinho, Edifício Master, possui um caráter social muito interessante. Ele mostra entrevistas com pessoas que falam de sua vida cotidiana. Porém, por detrás da mera narração individual da vida cotidiana é possível perceber o espaço público e o social presente nestas narrativas sem que isso seja imediatamente perceptível. Nosso objetivo é fazer uma análise, de cunho sociológico, sobre o material deste documentário. Isto quer dizer que abordaremos não os aspectos técnicos e formais, e sim a manifestação de relações sociais nesta obra cinematográfica.

De Piaget a Pinochet

O Edifício Master fica no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, capital. Ele está localizado a um quarteirão da praia, tem 276 apartamentos conjugados distribuídos em 12 andares. Cada andar possui 23 apartamentos. Na época em que o documentário foi produzido, havia um total de 500 moradores. A equipe alugou um apartamento por um mês e filmou durante uma semana. O documentário não é sobre a administração do prédio, mas isso aparece em alguns momentos. Sérgio, o síndico reeleito, disse que seu objetivo era tornar o prédio “bonito, digno, decente” e “conseguiu”. “Eu uso muito Piaget, quando não dá certo, parto para Pinochet”, diz ele, revelando que sua estratégia é educativa e, quando esta falha, passa a ser repressiva. A afirmação deixa claro o caráter ditatorial que a administração assume ocasionalmente. A existência de uma ditadura revela a ocorrência de conflitos. O Edifício Master é um palco de conflitos sociais.

A entrevistada Vera diz que os conflitos eram bem maiores, havendo casos de suicídio, mortes e prostituição. Com a nova administração, o prédio tornou-se familiar. Maria do Céu narra as noitadas que existiam na portaria e os conflitos que ocorriam. No fundo, o que as entrevistas revelam é um espaço conflituoso, tanto na esfera privada (apartamento) quanto na esfera pública, e nesta os conflitos são mais intensos e envolvem até mesmo a polícia, sempre solicitada naquela época, segundo a entrevistada. A nova situação diminui os conflitos. Este é o caso de muitos edifícios nas grandes cidades, marcados por conflitos mais ou menos intensos, vivências dispares e pelo papel da administração de gerir o turbilhão social cercado por concreto.


O Público no Privado

As entrevistas mostram narrativas de inúmeras pessoas falando de sua vida privada. O relato da solidão é realizado por Esther, Daniela, Henrique e, em alguns outros casos, em que fica subentendida. Isto revela tão-somente o isolamento das grandes cidades, mesmo quando as pessoas moram lado ao lado. Nestas cidades, a separação e o isolamento provocam o desconhecimento dos próprios vizinhos. O indivíduo passa a viver socialmente nas relações de trabalho, estudo e na própria moradia, mas não no círculo mais amplo do prédio e da vizinhança. A especialização e a divisão social do trabalho criam verdadeiros abismos entre os indivíduos, gerando gostos, concepções e valores distintos, que dificultam a comunicação. Outro elemento que pode ser revelado pela análise é que a esfera privada foi constituída socialmente. A solidão é um produto social. Vizinhos existem, são fisicamente acessíveis, mas não há comunicação. Em muitos casos, não há desejo de comunicação. Daniela, por exemplo, diz que pode ser “feio”, mas fica contente em subir e descer sozinha do elevador, não vendo ou sendo vista por ninguém. Daniela não sabe que este sentimento é mais comum do que ela pensa, não sendo mera característica individual.

Outro exemplo da produção social da esfera privada é visível nos relatos do passado dos entrevistados, principalmente no que se refere à família, mostrando como que as pessoas foram parar naquele lugar, os seus dilemas e traumas, bem como a busca do emprego, da sobrevivência, provocando a mudança de local de moradia. A família e o trabalho assumem grande importância nas narrativas justamente por serem determinantes do passado e/ou do presente. Mas a rua também faz parte dos relatos, sendo geralmente apresentada como local de lazer ou de manifestação da violência.

A família pode ser superprotetora, ausente, repressiva. Nos relatos, estas três possibilidades, entre outras, estão dadas. O indivíduo entrevistado que cita a família foi constituído em parte a partir destas relações familiares e de outras relações sociais, tal como os demais indivíduos que a compõem, bem como seus pais e assim sucessivamente. A idéia comum de que a família é a responsável única pela formação dos indivíduos ou que é a “célula” da sociedade, se revela equivocada por não perceber que ela mesma foi produzida socialmente.

O trabalho, por sua vez, pode ser uma busca, um refúgio, uma necessidade, um aspecto marcante na vida das pessoas. A pessoa trabalhadora pode ser um camelô, porteiro, professora, uma prostituta, um balconista, técnico de futebol, entre outras possibilidades. Para Maria Pia, “não existe pobreza” e se existe pobre é porque “não quer trabalhar”. Esta visão que reproduz a concepção do trabalho como aquele que “dignifica o homem” – mesmo se baseado na exploração e na alienação, ou, como diz Marx, fazendo o indivíduo fugir dele como o diabo foge da cruz – é reproduzida e manifesta a identificação de uma empregada doméstica com o seu trabalho alienado.

A Arte como Sublimação

Daniela diz: “Eu tenho problemas de neurose e sociofobia”. Ela coloca que gosta de escrever, pois funciona como “válvula de escape”. Em termos psicanalíticos, poderíamos dizer que o ato de escrever poesia ou pintar um quadro pode significar uma sublimação ou uma satisfação substituta. No Edifício Master, locus do isolamento e da solidão de uma sociedade individualista, conflituosa e repressiva, muitos usam a arte como forma de realização, de satisfação substituta, de sublimação. E, mais do que isso, revelam uma riqueza artística que muitas vezes nem sequer percebem, ou então se submetem aos cânones dos componentes do “campo artístico”, segundo expressão do sociólogo Bourdieu, e desconhecem o valor artístico de suas produções. Daniela, novamente, é exemplar, ao afirmar que seu quadro “A Floresta do Meu Desespero”, que trata, segundo ela, de paranóia e desamor, é “esteticamente ridículo”. Na verdade, nada tem de ridículo e possui uma imensa riqueza artística, de muito maior valor do que diversas obras consagradas. O simbolismo, que ela diz lhe atingir profundamente, apresenta a floresta como espaço ambíguo, no qual há arborização, oxigênio, aventura, enigma, mas também terror, tal como nas histórias infantis. O quadro mostra “os olhares da selva de pedra”, expressando “muita paranóia”, “invasão”, vigilância. No fundo, a floresta é a metáfora da cidade tal como percebida por Daniela.

Outros mostram grande envolvimento com a arte, como Nadir e Henrique. Alguns possuem um envolvimento mais intenso, através da produção artística ou do trabalho profissional com arte. Este é o caso de Fernando José, ator de várias novelas e filmes, Suze que foi dançarina, Eugênia que é escritora e poetisa. Há também os quadros de Laudicéia e a música de Paulo Mata. O caso de Jasson é um dos mais interessantes, principalmente o samba que ele compôs e foi gravado nos anos 1960, “Favela”. Um samba que fala da luta diária e do sofrimento dos favelados, mas abre espaço para a esperança. O favelado “sofre de dia, mas samba de noite e é feliz”, situação análoga ao dos moradores-artistas do Edifício Master.

Opressão e Utopia

Alguns entrevistados mostram seu descontentamento com a cidade, especialmente com Copacabana. Esther diz que “Copacabana é violenta”; Maria Regina diz que “não gosta de Copacabana”. Daniela compõe uma frase que merece ser citada, no momento em que afirma que a aglomeração típica de Copacabana a deixa estressada: “Não sei se são pessoas demais ou calçadas muito estreitas ou se é uma fusão desagradável dos dois elementos”. Marcelo, por sua vez, diz que a diversidade de pessoas no edifício não incomoda, mas a “concentração é opressiva” e as ruas são marcadas por crianças cheirando cola, prostitutas, michês, traficantes. No fundo, o que este e outros entrevistados mostram é o caráter opressivo do aglomerado urbano, em um contexto desfavorável, ampliando ainda mais a opressão.
Mas resta a persistência da utopia e ela, embora não assumindo caráter coletivo e amplo, mostra o desejo do novo. Se a “solidão machuca muito” (Esther), se a violência está presente no cotidiano, se os males cercam os moradores de todos os lados, há também o desejo de mudança. Fabiana, por exemplo, conta uma tentativa de superar o isolamento. Ela afirma que sempre ouvia a voz de uma criança que mora no andar de cima e sua mãe chamando-a pelo nome, Tainá. Passou a querer conhecê-la e falar com ela. Também revelou o desejo, ao ver crianças brincando no prédio, de perguntar se alguma se chamava Tainá, mas não o fez “por vergonha”. Neste caso, o desejo de superação do isolamento existe. Alessandra, outra entrevistada, diz que não gosta de trabalhar e gostaria de ficar na “mordomia”, que seria “acordar tarde e brincar com a filha”. Ela diz que quem morre está melhor, pois para de sofrer. O desejo de fugir da opressão e a vontade de viver uma vida diferente, se manifesta no que gostaria de fazer e na própria idéia de morte. A arte também é outra forma de sair da realidade, mostrando o desejo de outra realidade. A festa de aniversário que os vizinhos fazem para Geicy é outra forma de romper com o isolamento.

A riqueza das narrativas é visível. Outras interpretações poderiam ser feitas, outros aspectos poderiam ser colocados, bem como outras narrativas, tais como as de Carlos, Rita, Lúcia, Luiz, Roberto, Cristina, Dalva, etc. As interpretações destas narrativas são derivadas do encontro ou desencontro do intérprete com os entrevistados. Esta é a mensagem do samba “Favela”: “só vendo a lua de perto da janela, a gente vê como ela é bela”. A proximidade é fundamental e a lua é metáfora para favela, tal como se vê em outro trecho: “só quem vive na favela, reconhece os encantos dela”. A proximidade pode mostrar que não há encenação, mas drama real, sentido na carne de cada um. A vida no Edifício Master manifesta o problema social e humano geral: “Eu sei o que eles vivem, pois eu também vivo lá”.

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Artigo publicado originalmente em:

VIANA, Nildo . O Público e o Privado no Edifício Master. Sociologia, Ciência e Vida, v. 01, p. 72-75, 2007.

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2 comentários:

Anônimo disse...

Uma grande análise, perpassada por um forte humanismo, bem longe das mentes coisificadas de certos diretores!

Adão Ribeiro

Marcello Barbosa disse...

Nildo, gostaria de reencontrar a Fabiana! Eu e toda a turma em que estudamos juntos em Rio das Ostras, quando ela ainda morava em Barra de São João!
Você tem o contato dela? A turma é de 1998 e não lembramos o nome dela =\
aguardo
meu contato: marcellobarbosaufrj@hotmail.com
obrigado!