Jean Isidio dos Santos
As produções bibliográficas e as análises no campo da historiografia
cinematográfica de maneira geral apresentam inúmeras contradições,
superficialidades e incoerências. As inúmeras obras específicas sobre o cinema
apresentam problemas conceituais e teórico-metodológicos e por isso não abarcam
a realidade concreta, pois muitas vezes as análises são descontextualizadas,
sendo alheias ao momento histórico e realidade social. Estas análises simplistas
partem de uma visão de mundo limitada, pois procuram analisar a realidade
social de forma fragmentada.
No interior do campo de estudo das Ciências Humanas, existe uma limitação
conservadora que dá pouca importância à contribuição histórico-social das
imagens. Este fato explica-se pelo pouco avanço das análises críticas e pelo
limitado e inadequado tratamento metodológico no campo cinematográfico. Em
outras palavras, as diversas obras bibliográficas que se dedicaram a estudar o
cinema não procuraram romper com o superficialismo, com a linguagem técnica, com
a análise anacrônica e a-histórica. Neste sentido, o cinema foi, em muitos
momentos, compreendido como uma criação artística individual tal como
defenderam diversos cineastas da historiografia cinematográfica, ou da chamada
política dos autores, dentre eles, Truffaut, Chabrond, Godard.
Mas como analisar o cinema? Como romper com o tratamento superficial e
limitado? De que forma a concepção materialista da história possibilita a
superação da historiografia ideológica cinematográfica desvinculada da realidade
social? Qual é o papel da crítica social com relação à historiografia
cinematográfica tradicional?
Estas e outras questões instigantes de extrema relevância são fatores que
inquietarão o leitor no decorrer deste livro. Este não é um livro qualquer, é
uma obra diferenciada, pois a perspectiva analítica do autor procura romper e
ir além das limitações existentes na historiografia tradicional.
A abordagem marxista do cinema é a o ponto de partida do autor. Nildo
Viana utiliza o materialismo histórico para analisar a realidade social de
forma totalizante e não de forma fragmentária comumente utilizada na
historiografia tradicional. Uma questão de extrema relevância nesta obra é a
perspectiva crítica do autor com relação à influência da concepção marxista-leninista
em inúmeras teses sobre a obra de arte. Os pseudomarxistas partiram da teoria
do reflexo de Lênin para conceberem as suas ideologias cinematográficas, tal
como é o caso, por exemplo, de diversos cineastas russos: Eisenstein, Vertov,
dentre outros.
Para o autor, “as ideologias cinematográficas nascem com a própria origem
do cinema”. Uma vez que o cinema se desenvolve tecnologicamente, emerge do seu
interior diversas teses tecnicistas, metódicas e formalistas, que são produzidas
pelos agentes envolvidos no processo da produção cinematográfica.
Mas quem são estes agentes que elaboram o discurso ideológico
“competente” da análise cinematográfica? Para Nildo Viana “são os agentes
envolvidos no processo de produção e reprodução de determinada forma artística,
que criam o valor da obra de arte...”. Além do discurso competente
materializado na linguagem tecnicista e elitista, os ideólogos do cinema se
auto-intitulam como pseudo-intelectuais pertencentes a um universo intelectual
restrito e seleto para poucos membros que dominam a linguagem técnica e teórica
da cinematografia. Neste sentido, os ideólogos partem de uma linguagem
elitista, egoística, reforçando e criando uma separação preconceituosa entre
aqueles que são os detentores do conhecimento cinematográfico e os “ignorantes”
não entendidos.
A questão do fetichismo no cinema é abordada de forma inovadora nesta
obra. A perspectiva crítica do autor visa desmistificar e apontar as limitações
teórico-metodológicas da ideologia fetichista criada em torno da produção
cinematográfica pelos ideólogos conservadores da historiografia cinematográfica
tradicional. O fetichismo tem diversas conseqüências, dentre elas a idolatria
criada em torno da produção cinematográfica, que coloca o cinema num patamar
elevado e grandioso, bem como a reprodução dos valores dominantes que são
produzidos pelos agentes de produção. Ambos aspectos são analisados de forma
coerente nesta obra.
Uma produção fílmica é uma produção social e coletiva, portanto, esta
produção não está dissociada das relações sociais. O filme reproduz valores e
ideologemas que atingirão de forma direta ou indireta o público que o assiste.
Já que a produção fílmica é uma produção coletiva, ela é marcada pela luta de
classes, pelos antagonismos divergentes no momento da produção do filme, pois
os agentes que o produzem possuem perspectivas ideológicas diferenciadas.
Viana é enfático na sua crítica com relação ao fetichismo do cinema,
pois, para ele, “o filme é uma produção social”, “nada tem de sublime e os
produtores nada têm de genial, são seres humanos comuns...”. As diferenças
entre as produções fílmicas consistem no capital cultural cumulativo de um
diretor para outro, pois, alguns cineastas além de possuírem o capital cultural
acumulado devido a sua condição de vida, possuem o capital cinematográfico que
possibilita uma produção fílmica mais estruturada do que outras.
As questões do fetichismo no
cinema e do capital cinematográfico estão diretamente relacionadas à
perspectiva marxista enfatizada pelo autor no decorrer da obra. A preocupação
de Viana não é fazer um revisionismo teórico-crítico simplista da
historiografia cinematográfica. Esta obra vai além, pois ela aponta os limites
dos pseudomarxistas indo ao cerne do problema que muitas vezes está relacionado
à mera descritividade, a linguagem técnica e superficial das produções
cinematográficas. O materialismo histórico é um recurso metodológico
fundamental para a compreensão aprofundada da história social do cinema, sendo
assim, ele possibilita um rompimento com o fetichismo, com a ideologia
cinematográfica criada pelos seus agentes de produção. A ideologia
cinematográfica é perpassada por um conjunto de valores, construídos
socialmente pelos ideólogos desde o momento em que o cinema foi criado.
O materialismo histórico procura compreender o cinema a partir das
relações sociais em que ele foi produzido, pois o cinema é constituído
socialmente. Neste sentido, a perspectiva marxista vai além das concepções
fragmentárias que procuram isolar o cinema da realidade social e histórica.
A aplicabilidade da análise marxista é realizada pelo autor ao retratar o
significado original do expressionismo alemão. Neste livro Viana demonstra as
deformações, as incoerências e o tratamento equivocado dos ideólogos que
abordaram o expressionismo, dentre eles, Kracauer (1988), Eisner (2002), entre
outros. A abordagem de Viana sobre este período específico do expressionismo
alemão é inovadora, pois ele situa este período contextualizando-o num momento
histórico-social marcado pela ascensão das lutas operárias na Alemanha. Esta
obra possui uma escrita clara direcionada não apenas para um público específico
elitista e intelectualizado, pois é justamente este fetichismo ideológico que o
autor procura superar.
O presente livro é um marco no que diz respeito à abordagem marxista da
história do cinema, pois ele possui diversas concepções inovadoras que ainda
não haviam sido desenvolvidas dentro da historiografia cinematográfica. A
riqueza da escrita e do tratamento teórico-metodológico desenvolvido pelo autor
é um convite para todos aqueles que desejam aprofundarem o seu conhecimento no
campo da historiografia cinematográfica a partir de uma perspectiva crítica
marxista revolucionária. A concepção marxista compreende a produção fílmica
como uma criação coletiva desenvolvida no conjunto das relações sociais e neste
sentido esta obra propicia uma compreensão aprofundada e pioneira no que se
refere ao tratamento metodológico adequado para a análise da produção
cinematográfica.
Jean
Isídio dos Santos é Professor da Universidade Estadual de Goiás.