O Público e o Privado no Edifício Master
Nildo Viana
O Documentário dirigido por Eduardo Coutinho, Edifício Master, escolhido como o melhor filme documentário do Festival de Gramado de 2002, possui um caráter social bastante interessante. O documentário aborda um determinado edifício e mostra entrevistas com pessoas que falam de sua vida cotidiana. Porém, por detrás da mera narração individual da vida cotidiana é possível perceber o espaço público e o social presente nestas narrativas sem que isso seja imediatamente perceptível. Nosso objetivo é fazer uma análise, de cunho sociológico, sobre este documentário. Isto quer dizer que não iremos analisar os aspectos técnicos e formais, e sim a manifestação de relações sociais nesta obra cinematográfica.
Administração: De Piaget a Pinochet
O Edifício Master fica no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, capital. Ele está localizado a um quarteirão da praia, tem 276 apartamentos conjugados distribuídos em 12 andares. Cada andar possui 23 apartamentos. Na época em que o documentário foi produzido, havia um total de 500 moradores. A equipe alugou um apartamento por um mês e filmou durante uma semana.
O documentário não pretende abordar a administração do prédio, mas em alguns momentos isto se manifesta, tal como nas primeiras entrevistas. Sérgio, o síndico reeleito, disse que seu objetivo era tornar o prédio “bonito, digno, decente” e “conseguiu”. “Eu uso muito Piaget, quando não dá certo, parto para Pinochet”, diz ele, revelando que sua estratégia é educativa e, quando esta falha, passa a ser repressiva. Deixando de lado sua interpretação equivocada de Piaget (“amor”, “carinho”, etc., que são teses pedagógicas de outros autores), a afirmação deixa claro o caráter ditatorial que a administração assume ocasionalmente. A existência de uma ditadura revela a ocorrência de conflitos. O Edifício Master é um palco de conflitos sociais.
Segundo a entrevistada Vera, os conflitos eram bem maiores, mas com a nova administração, diminuiu. Ocorriam muitos casos de suicídio, mortes, prostituição e passou a ser um “prédio familiar”. Outra entrevistada, Maria do Céu, revela as noitadas que existiam na portaria e os conflitos que ocorriam. No fundo, o que as entrevistas revelam é um espaço conflituoso, onde a esfera privada (apartamento) é uma parte que se defronta com a esfera pública, e neste os conflitos são mais intensos e envolvem até mesmo a polícia, sempre solicitada naquela época, de acordo com a entrevistada.
A nova situação torna o prédio mais calmo, no qual os conflitos foram minimizados. Este é o caso de muitos edifícios nas grandes cidades, marcados por conflitos mais ou menos intensos, vivências dispares, mudanças e por um papel importante por parte da administração em gerir o turbilhão social cercado por cimento.
O Público no Privado
Ao ver as entrevistas no aparelho de televisão, o espectador se vê diante de narrativas de inúmeras pessoas falando de sua vida pessoal. No caso, a maioria não escapa de seus problemas individuais, que seriam da esfera privada. O relato da solidão é realizado por Esther, Daniela, Henrique e em alguns outros casos em que fica subentendida. Isto revela tão-somente o isolamento das grandes cidades, mesmo quando as pessoas moram lado ao lado. Nas pequenas cidades interioranas, as pessoas se conhecem, se encontram. Nas grandes cidades, a separação e o isolamento provocam o desconhecimento dos próprios vizinhos. O indivíduo passa a viver socialmente nas relações de trabalho, estudo e na própria moradia, mas não no círculo mais amplo do prédio e da vizinhança. A especialização e a divisão social do trabalho criam verdadeiros abismos entre os indivíduos, gerando gostos, concepções, valores, distintos que dificultam a comunicação e a afinidade. Porém, o que se revela aí também é que a esfera privada foi constituída socialmente. A solidão é um produto social. Pessoas existem, são fisicamente acessíveis, mas não há comunicação. Em muitos casos, não há desejo de comunicação. Daniela, por exemplo, diz que pode ser “feio”, mas fica contente em subir e descer sozinha do elevador, não vendo ou sendo vista por ninguém. Daniela não sabe que este sentimento é mais comum do que ela pensa, não sendo mera preferência individual.
Outro exemplo da produção social da esfera privada é visível nos relatos do passado dos entrevistados, principalmente no que se refere à família, mostrando como que as pessoas foram parar naquele lugar, os seus traumas, bem como a busca do emprego, da sobrevivência, que também mobilizam as pessoas, provocando a mudança de local de moradia. A família e o trabalho assumem grande importância nas narrativas justamente por ser determinantes do passado ou do presente. Mas a rua também faz parte dos relatos, sendo geralmente apresentado como local de lazer ou de manifestação da violência.
A família pode ser superprotetora, ausente, repressiva. Nos relatos, estas três possibilidades, entre outras, estão dadas. Mas assim como o indivíduo entrevistado que citou a família foi constituído em parte a partir destas relações familiares, os demais indivíduos que a compõem também o foram, bem como seus pais e assim sucessivamente. A idéia comum e conservadora de que a família a responsável única pela formação das pessoas, bem como que seja a “célula” da sociedade, se revela equivocada por não perceber que ela mesma foi produzida socialmente.
O trabalho, por sua vez, pode ser uma busca, um refúgio, uma necessidade e ser marcante na vida das pessoas. A pessoa trabalhadora pode ser um camelô, porteiro, professora, uma prostituta, um balconista, treinador de futebol, entre outras possibilidades. Para a entrevistada Maria Pia, “não existe pobreza” e se existe pobre é porque “não quer trabalhar”. Esta visão que reproduz a ideologia do trabalho que “dignifica o homem”, mesmo se baseado na exploração, no massacre, ou, como diz Marx, fazer o indivíduo fugir dele como o diabo foge da cruz, é reproduzido e manifesta identificação de uma emprega doméstica com o seu trabalho alienado.
A Arte como Sublimação
Daniela, uma das entrevistadas mais interessantes, é professora e mora com três gatos. “Eu tenho problemas de neurose e sociofobia”, diz ela. Ela coloca que gosta de escrever, pois funciona como “válvula de escape”. Em termos psicanalíticos, poderíamos dizer que o ato de escrever poesia ou pintar um quadro pode significar uma sublimação ou uma satisfação substituta. No Edifício Master, lócus do isolamento e da solidão de uma sociedade individualista, conflituosa e repressiva, muitos usam a arte como forma de realização, de satisfação substituta, de sublimação. E, mais do que isso, revelam uma riqueza artística que muitas vezes nem sequer percebem, ou então se submetem aos cânones dos componentes do “campo artístico”, segundo expressão do sociólogo Bourdieu, e desconhecem o valor artístico de suas produções. Daniela, novamente, é exemplar, ao afirmar que seu quadro “A Floresta do Meu Desespero”, que trata, segundo ela, de paranóia e desamor, é “esteticamente ridículo”. Na verdade, nada tem de ridículo e possui uma imensa riqueza artística, de muito maior valor do que diversas obras consagradas. O simbolismo, que ela diz lhe atingir profundamente, apresenta a floresta como espaço ambíguo, no qual há arborização, oxigênio, aventura, enigma, mas também terror, tal como nas histórias infantis. O quadro mostra os olhares da selva de pedra, expressando muita paranóia, invasão, vigilância. No fundo, a floresta é a metáfora da cidade tal como percebida por Daniela.
Outros também gostam de arte, como Nadir e Henrique, e alguns produzem ou produziram arte. Entre os que produziram arte, pode-se ver Fernando José, ator de várias novelas e filmes, Suze que foi dançarina, Eugênia que foi e é escritora e poetisa. Há também os quadros de Laudicéia e a música de Paulo Mata. O caso de Jasson é um dos mais interessantes, principalmente o samba que ele compôs e foi gravado nos anos 1960, “Favela”. Um samba que fala da luta diária e do sofrimento dos favelados, mas abre espaço para a esperança. O favelado “sofre de dia, mas samba de noite e é feliz”, situação análoga ao dos moradores do Edifício Master.
Opressão e Utopia
Alguns entrevistados mostram seu descontentamento com a cidade, especialmente com Copacabana. Esther diz que “Copacabana é violenta”; Maria Regina diz que “não gosta de Copacabana”, entre outros exemplos. Daniela compõe uma frase que merece ser citada, no momento em que afirma que a aglomeração típica de Copacabana a deixa estressada: “Não sei se são pessoas demais ou calçadas muito estreitas ou se é uma fusão desagradável dos dois elementos”. Marcelo, por sua vez, diz que a diversidade de pessoas no edifício não incomoda, mas a “contração é opressiva” e as ruas são marcadas por crianças cheirando cola, prostitutas, michês, traficantes. No fundo, o que estes e outros entrevistados mostram é o caráter opressivo do aglomerado urbano, em um contexto desfavorável, ampliando ainda mais a opressão.
Mas resta a utopia e ela, embora não assumindo caráter social, coletivo e amplo, mostra o desejo do novo, expressando a persistência da utopia, tal como já colocava o filósofo Ernst Bloch. Se a “solidão machuca muito” (Esther), se a violência está presente no cotidiano, se os males cercam os moradores de todos os lados, há também o desejo de mudança. Fabiana, por exemplo, conta uma tentativa de superar o isolamento. Ela afirma ouvir a voz de uma criança que mora no andar de cima, chamada Tainá. Também revelou o desejo, ao ver crianças brincando no prédio, de perguntar se alguma se chamava Tainá, mas não o fez “por vergonha”. O desejo existe. Alessandra, outra entrevistada, diz que não gosta de trabalhar e gostaria de ficar na “mordomia”, que seria “acordar tarde e brincar com a filha”. Ela diz que quem morre está melhor, para de sofrer. O desejo de fugir do trabalho alienado e a vontade de viver uma vida diferente, é manifestado no que gostaria de fazer e na própria idéia de morte. A arte também é outra forma de sair da realidade, mostrando o desejo de outra realidade. A festa de aniversário que os vizinhos fazem para Geicy é outra forma de romper com o isolamento, com a opressão, e manifestação do desejo de outra vida.
Representações e Realidade
A riqueza das narrativas é visível e muitos outros aspectos poderiam ser colocados. Outras narrativas, embora isto dependa do tempo e da disposição dos entrevistados, mas aqui também poderia aparecer como Carlos, Rita, Lúcia, Luiz, Roberto, Cristina, Dalva e muitos outros. Também visões diferentes sobre estas narrativas podem ser apresentadas.
Eduardo Coutinho, Walter Lima Júnior e Consuelo Lins mostram a visão da equipe de produção sobre o seu produto. O material rico produzido por eles não obteve comentários tão ricos assim. Isto se deve a visão própria dos cineastas. É o que se vê quando eles falam dos entrevistados como “personagens”, esquecendo-se que não se trata de ficção, que são indivíduos de carne e osso, concretos, reais. Também a interpretação, que fala em “melodrama”, também expressa a confusão entre a vida real com sua riqueza, contradições, versões, etc., reduzida a mera “representação teatral”.
A vida é muito mais rica que a representação. Isto tudo é derivado do distanciamento entre a equipe de produção e os moradores do edifício Master, as diferentes perspectivas. Isto pode ser exemplificado com o samba “Favela”, composto por um dos moradores: “só vendo a lua de perto da janela, a gente vê como ela é bela”. Aqui, a proximidade é fundamental e a lua é metáfora para favela, tal como se nota em outro trecho: “só quem vive na favela, reconhece os encantos dela”. Assim, somente a convergência de perspectivas pode mostrar que não há encenação, mas drama real, sentido na carne de cada um. Uma análise do documentário é um encontro entre o analista e os analisados, mas pode ser um desencontro. Mas a vida no edifício Master, com suas dificuldades, manifesta o problema social e humano geral, e por isso posso dizer: “Eu sei o que eles vivem, pois eu também vivo lá”.
Uma versão resumida deste artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo . O Público e o Privado no Edifício Master. Sociologia, Ciência e Vida, v. 01, p. 72-75, 2007.
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