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Informe e Crítica

20 de jan. de 2011

Psicanálise dos Filmes de Terror

Personagem de "O Monstro Canibal"

Psicanálise dos Filmes de Terror

Nildo Viana

Qual é a lógica que está por detrás dos filmes de terror?  Existem algumas características comuns a quase todos os filmes de terror. O apelo ao sobrenatural está presente em todos. O sobrenatural, por sua vez, possui sua origem no pensamento mítico e foi substituído pelo pensamento religioso. O sobrenatural, nas sociedades onde o pensamento mítico foi substituído pelo pensamento religioso, está ligado à distinção entre o bem e o mal. É o sobrenatural de caráter religioso que distingue o absurdo e o extraordinário destes filmes com os que se vê nos contos de fadas, nos sonhos, na literatura, etc. A dicotomia entre o bem e o mal existentes nos filmes de terror não pode ser explicada apenas pelo seu caráter religioso, pois é preciso explicar o motivo de sua permanência em nossa sociedade, marcada por um amplo processo de racionalização que a torna uma sociedade extremamente “racionalista”. A própria permanência da religião deve ser explicada. A religião persiste porque a “miséria real” persiste, ou seja, porque a sociedade continua sendo marcada pela miséria, exploração, alienação e repressão.

A sociedade contemporânea reprime as potencialidades humanas. O “sucesso econômico”, a busca de status, a competição social, substituem e reprimem a realização dos desejos autênticos que são reprimidos[1]. A repressão dos desejos humanos faz com que estes sejam lançados no mundo do inconsciente. Este, então, como já havia colocado Freud[2], se manifesta nos sonhos, na fantasia, etc. Os desejos reprimidos povoam o inconsciente e este se manifesta em diversas oportunidades. Mas, além disso, a não-satisfação de desejos cria a sombra, um novo componente psíquico, que gera distúrbios psíquicos (neurose, psicose, etc.), agressividade etc. Quanto mais o inconsciente se manifesta, mais se descarrega a ansiedade e as tensões; quanto menos, menor, por conseguinte, será a descarga, que será concretizada de outra forma. Assim, quanto maior a repressão e quanto menor a descarga do inconsciente, ou o desenvolvimento da persona (sublimação), maior será a força da sombra[3]. Esta análise poderá colaborar com a compreensão da estrutura dos filmes de terror.

Os filmes de terror mais antigos apresentavam um conflito entre o bem e o mal, tais como os mais recentes. Porém, entre os mais antigos e os mais recentes há uma diferença fundamental: nos mais antigos, o que predominava era a vitória do bem sobre o mal e nos mais recentes ocorre o contrário. Qual o motivo desta mudança? Podemos supor que a razão disto se encontra na identificação com o bem, no primeiro caso, e com o mal, no segundo. A identificação com o bem, neste caso, significa uma identificação com o bem tal como este é concebido pelos valores cristãos e assume um caráter de uma tentativa de assustar os “infiéis” pelo temor. Esta hipótese só pode ser comprovada mediante uma pesquisa concreta. Mas ela é confirmada, pelo menos parcialmente, pelos discursos aterrorizantes de certas igrejas que permanecem até os dias de hoje.
Mas o que nos interessa aqui são os filmes de terror mais recentes. Podemos dizer que nestes filmes há uma identificação do criador do seu enredo com “o mal”. Esta  hipótese não tem como fundamento apenas o fato de que o mal triunfe mas também pela própria estrutura de tais filmes.

Neste sentido, é exemplar o filme O Monstro Canibal. Ele conta a história de uma desenhista. Ela era especialista em história em quadrinhos de terror que se encontrou com alguns “amigos” (invejosos e plagiadores, com apenas uma exceção) em um casarão num fim de semana. Ela passou a sua estada discutindo com o seus colegas e, a cada discussão, encontrava inspiração para desenhar um monstro canibal devorando suas vítimas, que ela desenhava com todas as características físicas de suas companhias de fim de semana. Entretanto, o monstro aparecia na realidade (do filme, é claro) e devorava realmente as pessoas, que iam desaparecendo uma por uma e ninguém desconfiava de nada, pois, como o monstro era canibal, ele comia suas vítimas e não sobravam restos e assim todos os restantes pensavam que eles tinham simplesmente ido embora. No final do filme, ocorre a tragédia de que o único dos presentes que era amigo da desenhista acaba sendo devorado pelo monstro e ela se torna consciente de que era responsável por tudo, ou seja, que era o seu desejo e o seu ódio (seu “mal” interior, sua sombra) que fazia surgir o monstro, que o alimentava e dava força e tudo que daí decorria, através dos seus desenhos. Ela também percebeu que isto estava cada vez mais longe do seu controle, tal como se pode notar no fato de seu amigo também ter sido devorado, ou seja, a sombra tomou conta dela. Os desenhos anteriores são todos queimados e ela cria, então, um desenho onde o monstro desaparece e todos os seus amigos retornam ao mundo dos vivos. Mas da lixeira retorna o monstro que devora a todos, inclusive a desenhista. O retorno do monstro apenas simboliza que o mal está dentro dela e que seu esforço “racional” em superá-lo é inútil, pois ele é mais forte e sempre volta. É a vitória do mal sobre o bem.

 Este filme é paradigmático, pois revela que o mal (no caso, o monstro canibal) tem origem no ódio que a desenhista sente em relação a algumas pessoas. O que se vê, a partir disto, é que uma obra fictícia (a história em quadrinhos de um monstro canibal) expressa sentimentos reais (o ódio da desenhista). O mesmo pode ser dito a respeito do próprio filme O Monstro Canibal, uma criação fictícia que manifesta sentimentos reais e que toma esta própria relação entre ficção e sentimentos como tema e isto é feito de tal forma que revela a lógica de produção deste tipo de filme.

Mas se O Monstro Canibal apresenta de forma um tanto quanto explícita esta relação, o mesmo não ocorre com os demais filmes de terror. Entretanto, em muitos se percebe esta relação de forma implícita. Basta ver o tema recorrente do perigo do espelho ou dos sonhos. O que o espelho e os sonhos refletem além de nós mesmos? O mal está do outro lado do espelho e nos ameaça a devorar ou destruir e os sonhos, tal como no filme O Pesadelo, é onde o mal se manifesta e busca penetrar no nosso período de vigília (quando estamos acordados). O “outro” que é o mal (a sombra) está nos sonhos e espelhos, o que reflete o nosso “lado obscuro”. Enfim, estes filmes retratam os conflitos dos seus criadores com os seus fantasmas interiores. A identificação com o mal é decorrente da situação do criador do filme, não só pelo fato de que assim ele descarrega seu ódio destrutivo de forma fictícia, sendo uma mistura da manifestação da persona (o que Freud chama de sublimação)[4] comandada pela sombra, mas também pelo fato de que ele é o “dono” da história e é ele que irá descarregar o ódio e por isso o mal não lhe é ameaçador mas sim para aqueles que ele odeia.

 Aliás, daí podemos sugerir a hipótese de que as pessoas que são destruídas nestes filmes sejam símbolos de tipos de pessoas que o criador da história realmente odeia. O ódio é produto do sentimento de impotência e da vontade de vingança. Este ódio é produto da sombra, das energias destrutivas acumuladas no indivíduo devido à mais-repressão da sociedade repressiva.

Podemos abrir um parêntesis aqui para explicar que o sentimento de impotência pode produzir diversas reações. Entre estas reações se destacam o ódio e o medo. Isto ocorre principalmente no interior de relações sociais nas quais o sentimento de impotência diante de injustiças ou das ações de pessoas tirânicas produz ódio ou medo. Juntamente com o ódio vem o desejo de vingança e junto  com o medo vem a submissão. Cada indivíduo possui uma predisposição maior para um ou para outro e isto depende do seu processo histórico de vida, que fornece uma determinada configuração ao seu universo psíquico, embora isto possa ser alterado no conjunto das relações sociais (a diminuição da repressão, por exemplo, pode alterar tal configuração).

 Entretanto, é preciso ressaltar que há o predomínio de um ou de outro  mas ambos estão, de certa forma, presentes. Não há nenhum submisso que não alimente um quantum de ódio pelo seu tirano e não há nenhum revoltado que não carregue em sim um quantum de medo, a não ser em casos concretos raros. Se não fosse assim, o medroso seria incapaz de qualquer ato de rebeldia, o que não se verifica na realidade, e o revoltado tentaria concretizar sua vingança imediatamente, o que não ocorre efetivamente e é justamente esta situação que permite a emergência do ódio e do medo. O ódio contido pode se manifestar através de outras formas de violência e agressividade, ou mesmo sob formas socialmente permitidas, tal como, segundo nossa hipótese, a produção de filmes de terror.

No caso de O Pesadelo, as vítimas do criminoso “ressuscitado” Fred Krueger (que morreu queimado pelos moradores do bairro onde se desenvolve o filme após ter sido absolvido pelo crime de assassinato de crianças) eram três jovens “normais”, um jovem envolvido com drogas e uma mulher alcoólatra, mãe de uma das vítimas.

Estes jovens passam a sonhar que um homem/monstro misterioso que possui lâminas nas mãos os perseguem (individualmente) e eles acordam pouco antes de serem  mortos. Fred Krueger voltou para se vingar e a vingança surge a partir do momento em que, passando por cima da lei e da decisão judicial, os moradores fizeram justiça com as próprias mãos. Duas das vítimas eram parentes de um delegado (uma era a esposa, que participou da perseguição a Krueger e que inclusive guardou a arma que ele utilizava para matar as crianças – laminas que se encaixavam nas mãos como uma espécie de luva – e a outra era a filha). O delegado não fez e nem podia fazer nada para salvá-las, assim como também não salvou Fred  Krueger. No fundo, o ódio do criador deste filme, podemos supor, é direcionado para aqueles que fazem justiça com as próprias mãos. Isto, entretanto, é apenas uma hipótese provisória que somente uma pesquisa sobre tal criador poderia confirmar ou refutar.

Mas é bem mais provável e menos discutível a idéia de que o filme de terror manifesta os conflitos interiores de seu criador. De qualquer forma, no universo psíquico do indivíduo convive as energias reprimidas, incluindo a sombra, o lado perverso provocado por um processo de mais-repressão e de falta de possibilidade de auto-realização individual, seja através da manifestação da persona, ou de qualquer forma de satisfação substituta.



[1] Cf. Viana, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. São Paulo, Escuta, 2008.
[2] Cf. Freud, Sigmund. Esboço de Psicanálise. São Paulo, Abril Cultural, 1978.
[3] Uma exposição do significado destes conceitos (sombra, persona etc.) se encontra em: Viana, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Goiânia, Edições Germinal, 2002.
[4] Cf. Freud, Sigmund. Ob. cit. No entanto, nossa concepção tem algumas diferenças em relação à de Freud (veja Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico).
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O presente texto foi publicado originalmente no livro: VIANA, Nildo (org.). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano. Goiânia, Edições Germinal, 2002.


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