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Informe e Crítica

16 de nov. de 2018

Loucura e Autoridade em “O Gabinete do Doutor Caligari”



Loucura e Autoridade em “O Gabinete do Doutor Caligari”*

Nildo Viana

O filme O Gabinete do Doutor Caligari, Robert Wiene (Alemanha, 1919), é um filme mudo que obteve diversas interpretações diferenciadas. Este será o mais antigo e primeiro filme que realizaremos exposição escrita da assistência crítica. Para tanto, colocaremos os itens que apresentamos nos procedimentos para assistência crítica e apresentá-los sob a forma escrita. O mesmo procedimento será realizado nos casos seguintes.


A) Contextualização:
O filme O Gabinete do Doutor Caligari é uma obra do cinema mudo alemão de 1919. A Alemanha, neste período, passava por vários conflitos sociais. Após a derrota na Primeira Guerra Mundial, muitos soldados voltaram para seu país e uma tendência revolucionária tomou conta da Alemanha, com a chamada “Revolução de Novembro de 1918” e formação dos conselhos operários e de soldados e a instauração da República de Weimar. A pobreza e o desemprego aumentaram drasticamente, bem como a inflação e outros problemas sociais. Isto, aliado com a derrota na guerra e as sequelas derivadas dela, produziu um crescimento enorme do descontentamento popular. A emergência dos conselhos operários ocorre em 1918 e foram integrados na sociedade alemã, sendo que muitos foram corrompidos ou hegemonizados pela social-democracia e em algumas cidades e regiões se mantiveram forte e criaram repúblicas conselhistas ou tentativas neste sentido.
A República de Weimar levou a social-democracia ao governo, aliado com  a Social-Democracia Independente e com a oposição da esquerda representada pela Liga Spartacus, tendência dissidente da social-democracia, tendo como principais líderes Rosa Luxemburgo e Karl Liebneckt, que foram assassinados em fevereiro de 1919. Novas tentativas de revoluções proletárias ocorreram durante 1919 até 1921, e as lutas sociais prosseguiram fortes até 1923.
Na esfera artística, o expressionismo que havia surgido antes da Primeira Guerra Mundial, e assumia uma postura crítica em relação à sociedade burguesa, acaba se politizando e radicalizando ainda mais, tal como ocorreu principalmente no teatro, mas também na poesia e outras formas de arte. O expressionismo era o principal movimento artístico alemão do início dos anos 1920. Vários grupos expressionistas surgiram após 1918, tal como o Grupo de Novembro (referência à Revolução de Novembro de 1918), O Conselho de Artistas (inspirado nos conselhos operários) e Grupo Vermelho. O expressionismo unia crítica da sociedade capitalista e das convenções sociais e formalismo, bem como expressava o desejo da concretização da revolução social.

B) Informações Preliminares:
O filme foi produzido a partir da ideia elaborada pelos roteiristas Hans Janowitz e Karl Mayer (também grafado como Carl), sendo que este último será um dos principais roteiristas da época do expressionismo cinematográfico alemão, sendo responsável por outras obras importantes como Tartufo, (Friedrich Murnau, Alemanha, 1925). O diretor escolhido foi Fritz Lang, que, no entanto, devido à produção de outro filme não levou o projeto adiante e o diretor acabou sendo Robert Wiene. Inclusive é comum ver afirmações de que ele teria participação no roteiro, o que não é verdade no que se refere ao roteiro original e quanto ao que foi efetivamente filmado, ele apenas contribuiu sugerindo uma cena inicial para introduzir o filme, mas não o seu conteúdo (Robinson, 2000).
Uma informação importante é a de que o roteiro original foi alterado no processo de filmagem pelo diretor Robert Wiene[1], o que provocará inclusive um processo sobre o filme por parte dos roteiristas. A cena inicial e a cena final do filme, que criam uma moldura e uma espécie de filme dentro do filme, não existiam no roteiro inicial e inverte a mensagem que os roteiristas queriam passar, tal como mostraremos adiante.

C) Identificação da Trama do Filme:
A trama do filme envolve a questão da loucura e da autoridade. O narrador do filme – O personagem Francis – mostra que o Doutor Caligari é um louco que é, ao mesmo tempo, um psiquiatra, e usa os saberes psiquiátricos para conseguir atingir seus objetivos. Porém, no final do filme, fica evidente pela moldura da cena inicial e final, que o verdadeiro louco é o narrador. Na versão do diretor Wiene, tal como foi produzido efetivamente o filme, a história de Caligari é apenas a invenção de um louco. Claro que na versão dos roteiristas, Caligari é que seria o louco e representante da autoridade, da psiquiatria, do governo alemão. Na versão dos roteiristas, loucura e autoridade se identificam, enquanto que na versão do diretor, são coisas opostas. Porém, como o filme foi “emoldurado” por Wiene, e é essa a versão que chegou até nós, então a interpretação correta da trama do filme é a questão da loucura e de quem é o louco na história.

D) Identificação da Situação Problema e da Mensagem Central.
A situação-problema é, inicialmente, a dos crimes do louco chamado Caligari, que, no final, se descobre ser um psiquiatra. No entanto, há a cena final do filme no hospício mostrando que o narrador é que é o louco, então a situação-problema passa a ser a loucura do narrador e suas invenções. A mensagem central do filme é a dos perigos da loucura e da necessidade da sanidade, da psiquiatria, para entender e ajudar os loucos. A verdade está do lado da autoridade e do lado do louco está a insanidade, os delírios. A narrativa, a parte mais longa do filme, é mera alucinação que depois é reconhecida como tal no final do filme.

E) Identificação da resolução (ou não-resolução) da situação-problema:
A resolução da solução problemática se revela na cena final, na qual o psiquiatra e o contexto mostram que o narrador é louco e, por conseguinte, que toda a história é invenção dele. Assim, devido à simplificação  realizada pelo diretor, o próprio filme perdeu sua força. A história de crítica à autoridade se transformou numa história de um louco e a verdade que estava do lado da contestação passa a estar do lado da autoridade, da ordem.

F) Relação do Universo Ficcional e Relações Sociais:
Aparentemente tal filme não possui nenhuma relação com a realidade social. Apenas revelaria os delírios de uma mente perturbada. Sem dúvida, na versão dos roteiristas o filme era uma metáfora da sociedade alemã, mas na versão açucarada do diretor, o filme tornou-se uma obra que mostra os delírios de um louco. Claro está que o processo social de produção do filme mostra a disputa na equipe de produção e a vitória da versão do diretor, que também estava de acordo com os interesses dominantes e dos financiadores da produção. Esta versão é a que chega para os assistentes e é com base nela que se pode relacionar universo ficcional e universo social.
O universo ficcional mostra uma história que se desdobra a partir de uma narração. O filme se inicia com dois personagens sentados em um banco com um deles terminando uma história e Francis – o narrador do filme – começando outra narração. O narrador conta que ele e seu amigo, Alan, tomaram conhecimento da chegada, em sua cidade, Holstenwall, de uma feira itinerante cuja maior atração era o Doutor Caligari, que mostrava o sonâmbulo Cesare, que teria o poder de adivinhar o futuro. Desde a chegada de Cesare ocorreram mortes misteriosas, inclusive a do amigo do narrador, que havia perguntado para Cesare que dia morreria e este afirmou que seria naquela noite, o que ocorreu de fato. Depois o sonâmbulo seqüestra Jane, mulher cobiçada pelos dois amigos, mas acaba morrendo. Francis procurou a polícia para denunciar Caligari, mas não tinha provas.
Ele parte em busca de provas e, depois de alguns insucessos, consegue chegar até o hospício onde Caligari teria entrado. Lá consegue, junto com os demais psiquiatras, descobrir que o diretor do hospício possuía um livro sobre sonambulismo e, através de suas anotações, que havia sido internado um sonâmbulo no mesmo, bem como ele planejava usá-lo em suas experiências, tal como o místico medieval chamado Caligari. Caligari é internado após isto.
Na cena final, o narrador reaparece sentado em um banco e continuando sua narrativa, até que outros personagens aparecem e assim é revelado o ambiente da conversa: um hospício e todos os personagens (Alan, Jane, Cesare, etc.) estão presentes e são internos. Até que o diretor aparece e Francis o ataca dizendo que ele é, na verdade, o Doutor Caligari. Após ser seguro e controlado, o diretor diz que finalmente descobriu o mal que o assolava, que era confundi-lo com o místico medieval Caligari, e que também teria descoberto a cura.
Neste sentido, os personagens principais do filme colocam uma oposição: o narrador normal e o psiquiatra louco que se revela, no final do filme, sendo outra: o narrador louco e o psiquiatra normal. Essa oposição entre loucura e normalidade revela uma determinada concepção de ciência e autoridade. Os valores objetivados no filme são a autoridade e a ciência (ou, mais especificamente, a psiquiatria) e o desvalor é a loucura, o irracional. Por detrás disso o filme revela um ideologema que está objetivado nele: a concepção de que a loucura e o irracional são maléficos e que a ciência e a autoridade são benéficas e que a loucura é acompanhada por alucinações e a ciência pela verdade. O bom senso, a racionalidade, a ordem, a segurança, que tem como precondição a autoridade e a ciência, são defendidos. O resto é pura loucura, alucinação. Neste sentido, os valores e concepções apresentados no filme são conservadores e refletem determinados interesses de classe, em contradição com a versão original dos roteiristas.
As consequências sociais do filme são evidentes: o conformismo e o respeito à autoridade, por mais que se desconfie dela ou os loucos a denuncie. Isto é ainda mais evidente se lembrarmos o contexto histórico no qual o filme foi produzido e assistido: nos conturbados anos de tentativa de revoluções proletárias na Alemanha, de busca pelo proletariado de derrocada da autoridade, do governo, do capitalismo, através dos conselhos operários e das Repúblicas de Conselhos criadas em determinadas regiões e das lutas e tentativas em outras. Logo, a consequência social do filme é contribuir para o estancamento da transformação social, sendo, pois um filme conservador[2].

G) Reflexão após Assistência:
Uma vez encerrada a assistência, o assistente pode refletir sobre o filme com mais tempo e profundidade. É de se destacar os aspectos formais do filme, pois os cenários foram produzidos por artistas plásticos expressionistas, embora haja controvérsias sobre de quem foi a ideia, se dos roteiristas ou não, sendo que mostram uma visão deformada dos objetos, sendo expressão da visão de um louco. Isto serviu para muitos caracterizar o filme como expressionista e para delimitar se um filme era ou não feito nos moldes do expressionismo. Porém, o expressionismo não é um formalismo e sim, pelo contrário, um antiformalismo e esta interpretação não se sustenta (Viana, 2009a). De qualquer forma, o filme possui méritos formais e manifesta o expressionismo formalmente, relacionando o louco e sua percepção distorcida da realidade.
Assim, O Gabinete do Doutor Caligari é um filme expressionista de forma bastante ambígua. O aspecto expressionista vem dos roteiristas e sua intenção original, dos cenários, dos aspectos formais[3], mas não possui um aspecto fundamental deste movimento artístico, o caráter crítico. Assim, o filme opõe loucura e autoridade e nesta oposição revela sua preferência pela autoridade. Este processo reforça as relações de poder estabelecidas na época e esse conservadorismo datado transcende sua época, valendo para os dias atuais, já que a situação atual não é muito diferente.

H) Avaliação.
O Gabinete do Doutor Caligari é um filme perpassado por contradições. Há duas histórias, uma dentro da outra, e isto possibilita a determinados assistentes realizar uma interpretação equivocada do filme, atribuindo-lhe um caráter crítico. Os aspectos positivos do filme são a parte da narrativa de Francis sobre Caligari e os aspectos formais inovadores e bem estruturados. O universo ficcional também pode ser visto como a manifestação da perspectiva do dominante sobre a perspectiva dos dominados. Neste sentido, o filme tem como mérito o aspecto formal e historicamente cumpriu o papel de abrir espaço para outras experiências similares e para fortalecimento do expressionismo, embora fosse apenas parcialmente expressionista.
O aspecto negativo do filme é justamente a moldura feita por Wiene, revelando que este diretor não compartilhava a mesma perspectiva que o expressionismo. Da arte expressionista ele apenas aproveitava sua capacidade e riqueza formal. Desta forma, o filme, apesar das contradições e da moldura conservadora que recebeu, é uma obra importante e com certa qualidade, o que se deve aos roteiristas (que permitiram a existência da contradição no filme e a narrativa crítica que era a totalidade e se transformou numa parte e por sua participação na produção do cenário), aos pintores expressionistas e sua colaboração formal, aos atores (Werner Krauss, Conrad Veidt, etc.).
Um bom filme, embora nada de espetacular e possuindo problemas e bem inferior à grande maioria dos demais filmes expressionistas, apesar da tentativa de muitos de tentar fazer dele o filme-modelo do expressionismo. Sem dúvida, se o diretor tivesse sido Fritz Lang, certamente o filme teria sido diferente e com maior qualidade. De qualquer forma, é uma obra que tem importância histórica no desenvolvimento do cinema e que, apesar dos pontos negativos, abre questões importantes para se pensar na sociedade moderna.
Sem dúvida, para quem parte da assistência crítica, é um bom exemplo de como uma produção cultural contestadora pode ser desfigurada e como é que uma perspectiva de classe (a dos roteiristas) pode ser recuperada e deformada por outra perspectiva (a do diretor), transformando-a em produção cultural conformista. Os roteiristas partiam da perspectiva de Francis e o diretor da perspectiva de Caligari. Nesse sentido, fica compreensível a transformação e o filme pode ser visto como a narrativa dominante sobre um discurso crítico da autoridade.

* (Trecho do livro: VIANA, Nildo. Como Assistir um Filme. Rio de Janeiro: Corifeu, 2009).





[1] Estas informações estão disponíveis em alguns livro sobre história do cinema, bem como de forma mais detalhada em Kracauer (1988) e principalmente Robinson (2000). Também é possível conseguir algumas informações preliminares na Internet, mas com o devido cuidado e cautela neste caso, pois muitas informações equivocadas e falsas são apresentadas em blogs e outros sites. Por exemplo, há vários sites que afirmam que o filme foi “escrito” pelo diretor Wiene ou baseado na obra dele, o que é absolutamente inverídico e que é uma invenção que não se sabe de onde saiu, pois este diretor nunca foi roteirista e/ou escritor. Também é comum ver a afirmação de que se trata de um filme de terror, o que é completamente falso (Viana, 2009a), embora esta interpretação equivocada tenha base nos escritos de Kracauer e Eisner, que criou um certo consenso nas representações cotidianas sobre isto. Por isso, as informações adquiridas via Internet devem ser analisadas criticamente e a fonte deve ser verificada.
[2] Obviamente que aqui se trata de uma interpretação correta, ou seja, do que o filme realmente repassou para os assistentes. Isto, porém, pode ser subvertido pela assistência projetiva ou assimiladora, transformando o que é conservador em algo contestador. O próprio Robinson (2000) afirma que o desfecho do filme não é tão claro quanto afirmaram Janowitz, um dos roteiristas, e Kracauer (1988), pois na época dominava o ceticismo em relação à autoridade e o público não aceitaria facilmente tal versão, podendo entender que o final expressa que Caligari, com sua esperteza, conseguiu ludibriar a todos e internar Francis como um louco. Este tipo de interpretação, obviamente, não resiste a uma análise do filme e o que revela, no fundo, não é o que desfecho do filme apresenta e sim o que o público quer (ou poderia querer) ver, ou seja, como a assistência projetiva pode perceber o filme. Desta forma, Robinson confunde o desfecho e seu caráter com o que o público poderia interpretar, de forma arbitrária.
[3] Os aspectos formais são produtos da expressão do personagem que é louco e, portanto, vê as coisas de forma distorcida e por isso não tem sentido buscar exigir tais formas em outros filmes expressionistas, pois cada um expressa algo diferente.

ASSISTA
O GABINETE DO DOUTOR CALIGARI - VERSÃO DE CARL MAYER E HANS JANOWITS
(ADAPTAÇÃO DE NILDO VIANA):


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