Loucura e Autoridade em “O Gabinete do Doutor Caligari”*
Nildo
Viana
O filme O Gabinete do Doutor Caligari, Robert Wiene (Alemanha, 1919), é um
filme mudo que obteve diversas interpretações diferenciadas. Este será o mais
antigo e primeiro filme que realizaremos exposição escrita da assistência
crítica. Para tanto, colocaremos os itens que apresentamos nos procedimentos
para assistência crítica e apresentá-los sob a forma escrita. O mesmo
procedimento será realizado nos casos seguintes.
A) Contextualização:
O filme O Gabinete do Doutor Caligari é uma obra do cinema mudo alemão de
1919. A Alemanha, neste período, passava por vários conflitos sociais. Após a
derrota na Primeira Guerra Mundial, muitos soldados voltaram para seu país e
uma tendência revolucionária tomou conta da Alemanha, com a chamada “Revolução
de Novembro de 1918” e formação dos conselhos operários e de soldados e a
instauração da República de Weimar. A pobreza e o desemprego aumentaram
drasticamente, bem como a inflação e outros problemas sociais. Isto, aliado com
a derrota na guerra e as sequelas derivadas dela, produziu um crescimento
enorme do descontentamento popular. A emergência dos conselhos operários ocorre
em 1918 e foram integrados na sociedade alemã, sendo que muitos foram
corrompidos ou hegemonizados pela social-democracia e em algumas cidades e
regiões se mantiveram forte e criaram repúblicas conselhistas ou tentativas
neste sentido.
A República de Weimar levou a
social-democracia ao governo, aliado com
a Social-Democracia Independente e com a oposição da esquerda
representada pela Liga Spartacus, tendência dissidente da social-democracia,
tendo como principais líderes Rosa Luxemburgo e Karl Liebneckt, que foram
assassinados em fevereiro de 1919. Novas tentativas de revoluções proletárias
ocorreram durante 1919 até 1921, e as lutas sociais prosseguiram fortes até
1923.
Na esfera artística, o
expressionismo que havia surgido antes da Primeira Guerra Mundial, e assumia
uma postura crítica em relação à sociedade burguesa, acaba se politizando e
radicalizando ainda mais, tal como ocorreu principalmente no teatro, mas também
na poesia e outras formas de arte. O expressionismo era o principal movimento
artístico alemão do início dos anos 1920. Vários grupos expressionistas surgiram
após 1918, tal como o Grupo de Novembro (referência à Revolução de Novembro de
1918), O Conselho de Artistas (inspirado nos conselhos operários) e Grupo
Vermelho. O expressionismo unia crítica da sociedade capitalista e das convenções
sociais e formalismo, bem como expressava o desejo da concretização da
revolução social.
B) Informações Preliminares:
O filme foi produzido a partir
da ideia elaborada pelos roteiristas Hans Janowitz e Karl Mayer (também grafado
como Carl), sendo que este último será um dos principais roteiristas da época
do expressionismo cinematográfico alemão, sendo responsável por outras obras
importantes como Tartufo, (Friedrich
Murnau, Alemanha, 1925). O diretor escolhido foi Fritz Lang, que, no entanto, devido
à produção de outro filme não levou o projeto adiante e o diretor acabou sendo Robert
Wiene. Inclusive é comum ver afirmações de que ele teria participação no
roteiro, o que não é verdade no que se refere ao roteiro original e quanto ao
que foi efetivamente filmado, ele apenas contribuiu sugerindo uma cena inicial
para introduzir o filme, mas não o seu conteúdo (Robinson, 2000).
Uma informação importante é a de
que o roteiro original foi alterado no processo de filmagem pelo diretor Robert
Wiene[1], o que provocará inclusive
um processo sobre o filme por parte dos roteiristas. A cena inicial e a cena final
do filme, que criam uma moldura e uma espécie de filme dentro do filme, não
existiam no roteiro inicial e inverte a mensagem que os roteiristas queriam
passar, tal como mostraremos adiante.
C) Identificação da Trama do
Filme:
A trama do filme envolve a
questão da loucura e da autoridade. O narrador do filme – O personagem Francis
– mostra que o Doutor Caligari é um louco que é, ao mesmo tempo, um psiquiatra,
e usa os saberes psiquiátricos para conseguir atingir seus objetivos. Porém, no
final do filme, fica evidente pela moldura da cena inicial e final, que o
verdadeiro louco é o narrador. Na versão do diretor Wiene, tal como foi
produzido efetivamente o filme, a história de Caligari é apenas a invenção de
um louco. Claro que na versão dos roteiristas, Caligari é que seria o louco e
representante da autoridade, da psiquiatria, do governo alemão. Na versão dos
roteiristas, loucura e autoridade se identificam, enquanto que na versão do
diretor, são coisas opostas. Porém, como o filme foi “emoldurado” por Wiene, e
é essa a versão que chegou até nós, então a interpretação correta da trama do
filme é a questão da loucura e de quem é o louco na história.
D) Identificação da Situação
Problema e da Mensagem Central.
A situação-problema é,
inicialmente, a dos crimes do louco chamado Caligari, que, no final, se
descobre ser um psiquiatra. No entanto, há a cena final do filme no hospício
mostrando que o narrador é que é o louco, então a situação-problema passa a ser
a loucura do narrador e suas invenções. A mensagem central do filme é a dos
perigos da loucura e da necessidade da sanidade, da psiquiatria, para entender
e ajudar os loucos. A verdade está do lado da autoridade e do lado do louco
está a insanidade, os delírios. A narrativa, a parte mais longa do filme, é
mera alucinação que depois é reconhecida como tal no final do filme.
E) Identificação da resolução
(ou não-resolução) da situação-problema:
A resolução da solução
problemática se revela na cena final, na qual o psiquiatra e o contexto mostram
que o narrador é louco e, por conseguinte, que toda a história é invenção dele.
Assim, devido à simplificação realizada
pelo diretor, o próprio filme perdeu sua força. A história de crítica à
autoridade se transformou numa história de um louco e a verdade que estava do
lado da contestação passa a estar do lado da autoridade, da ordem.
F) Relação do Universo Ficcional
e Relações Sociais:
Aparentemente tal filme não
possui nenhuma relação com a realidade social. Apenas revelaria os delírios de
uma mente perturbada. Sem dúvida, na versão dos roteiristas o filme era uma
metáfora da sociedade alemã, mas na versão açucarada do diretor, o filme
tornou-se uma obra que mostra os delírios de um louco. Claro está que o
processo social de produção do filme mostra a disputa na equipe de produção e a
vitória da versão do diretor, que também estava de acordo com os interesses
dominantes e dos financiadores da produção. Esta versão é a que chega para os
assistentes e é com base nela que se pode relacionar universo ficcional e
universo social.
O universo ficcional mostra uma
história que se desdobra a partir de uma narração. O filme se inicia com dois
personagens sentados em um banco com um deles terminando uma história e Francis
– o narrador do filme – começando outra narração. O narrador conta que ele e
seu amigo, Alan, tomaram conhecimento da chegada, em sua cidade, Holstenwall,
de uma feira itinerante cuja maior atração era o Doutor Caligari, que mostrava
o sonâmbulo Cesare, que teria o poder de adivinhar o futuro. Desde a chegada de
Cesare ocorreram mortes misteriosas, inclusive a do amigo do narrador, que
havia perguntado para Cesare que dia morreria e este afirmou que seria naquela
noite, o que ocorreu de fato. Depois o sonâmbulo seqüestra Jane, mulher
cobiçada pelos dois amigos, mas acaba morrendo. Francis procurou a polícia para
denunciar Caligari, mas não tinha provas.
Ele parte em busca de provas e,
depois de alguns insucessos, consegue chegar até o hospício onde Caligari teria
entrado. Lá consegue, junto com os demais psiquiatras, descobrir que o diretor
do hospício possuía um livro sobre sonambulismo e, através de suas anotações, que
havia sido internado um sonâmbulo no mesmo, bem como ele planejava usá-lo em
suas experiências, tal como o místico medieval chamado Caligari. Caligari é
internado após isto.
Na cena final, o narrador
reaparece sentado em um banco e continuando sua narrativa, até que outros
personagens aparecem e assim é revelado o ambiente da conversa: um hospício e
todos os personagens (Alan, Jane, Cesare, etc.) estão presentes e são internos.
Até que o diretor aparece e Francis o ataca dizendo que ele é, na verdade, o
Doutor Caligari. Após ser seguro e controlado, o diretor diz que finalmente
descobriu o mal que o assolava, que era confundi-lo com o místico medieval
Caligari, e que também teria descoberto a cura.
Neste sentido, os personagens
principais do filme colocam uma oposição: o narrador normal e o psiquiatra
louco que se revela, no final do filme, sendo outra: o narrador louco e o
psiquiatra normal. Essa oposição entre loucura e normalidade revela uma
determinada concepção de ciência e autoridade. Os valores objetivados no filme
são a autoridade e a ciência (ou, mais especificamente, a psiquiatria) e o
desvalor é a loucura, o irracional. Por detrás disso o filme revela um
ideologema que está objetivado nele: a concepção de que a loucura e o
irracional são maléficos e que a ciência e a autoridade são benéficas e que a
loucura é acompanhada por alucinações e a ciência pela verdade. O bom senso, a
racionalidade, a ordem, a segurança, que tem como precondição a autoridade e a
ciência, são defendidos. O resto é pura loucura, alucinação. Neste sentido, os
valores e concepções apresentados no filme são conservadores e refletem
determinados interesses de classe, em contradição com a versão original dos
roteiristas.
As consequências sociais do
filme são evidentes: o conformismo e o respeito à autoridade, por mais que se
desconfie dela ou os loucos a denuncie. Isto é ainda mais evidente se
lembrarmos o contexto histórico no qual o filme foi produzido e assistido: nos
conturbados anos de tentativa de revoluções proletárias na Alemanha, de busca
pelo proletariado de derrocada da autoridade, do governo, do capitalismo,
através dos conselhos operários e das Repúblicas de Conselhos criadas em
determinadas regiões e das lutas e tentativas em outras. Logo, a consequência
social do filme é contribuir para o estancamento da transformação social,
sendo, pois um filme conservador[2].
G) Reflexão após Assistência:
Uma vez encerrada a assistência,
o assistente pode refletir sobre o filme com mais tempo e profundidade. É de se
destacar os aspectos formais do filme, pois os cenários foram produzidos por
artistas plásticos expressionistas, embora haja controvérsias sobre de quem foi
a ideia, se dos roteiristas ou não, sendo que mostram uma visão deformada dos
objetos, sendo expressão da visão de um louco. Isto serviu para muitos
caracterizar o filme como expressionista e para delimitar se um filme era ou
não feito nos moldes do expressionismo. Porém, o expressionismo não é um
formalismo e sim, pelo contrário, um antiformalismo e esta interpretação não se
sustenta (Viana, 2009a). De qualquer forma, o filme possui méritos formais e
manifesta o expressionismo formalmente, relacionando o louco e sua percepção distorcida
da realidade.
Assim, O Gabinete do Doutor Caligari é um filme expressionista de forma
bastante ambígua. O aspecto expressionista vem dos roteiristas e sua intenção
original, dos cenários, dos aspectos formais[3], mas não possui um aspecto
fundamental deste movimento artístico, o caráter crítico. Assim, o filme opõe
loucura e autoridade e nesta oposição revela sua preferência pela autoridade.
Este processo reforça as relações de poder estabelecidas na época e esse
conservadorismo datado transcende sua época, valendo para os dias atuais, já
que a situação atual não é muito diferente.
H) Avaliação.
O Gabinete do Doutor Caligari é um filme perpassado por
contradições. Há duas histórias, uma dentro da outra, e isto possibilita a
determinados assistentes realizar uma interpretação equivocada do filme,
atribuindo-lhe um caráter crítico. Os aspectos positivos do filme são a parte
da narrativa de Francis sobre Caligari e os aspectos formais inovadores e bem
estruturados. O universo ficcional também pode ser visto como a manifestação da
perspectiva do dominante sobre a perspectiva dos dominados. Neste sentido, o
filme tem como mérito o aspecto formal e historicamente cumpriu o papel de
abrir espaço para outras experiências similares e para fortalecimento do
expressionismo, embora fosse apenas parcialmente expressionista.
O aspecto negativo do filme é
justamente a moldura feita por Wiene, revelando que este diretor não
compartilhava a mesma perspectiva que o expressionismo. Da arte expressionista
ele apenas aproveitava sua capacidade e riqueza formal. Desta forma, o filme,
apesar das contradições e da moldura conservadora que recebeu, é uma obra
importante e com certa qualidade, o que se deve aos roteiristas (que permitiram
a existência da contradição no filme e a narrativa crítica que era a totalidade
e se transformou numa parte e por sua participação na produção do cenário), aos
pintores expressionistas e sua colaboração formal, aos atores (Werner Krauss,
Conrad Veidt, etc.).
Um bom filme, embora nada de
espetacular e possuindo problemas e bem inferior à grande maioria dos demais
filmes expressionistas, apesar da tentativa de muitos de tentar fazer dele o
filme-modelo do expressionismo. Sem dúvida, se o diretor tivesse sido Fritz
Lang, certamente o filme teria sido diferente e com maior qualidade. De
qualquer forma, é uma obra que tem importância histórica no desenvolvimento do
cinema e que, apesar dos pontos negativos, abre questões importantes para se
pensar na sociedade moderna.
Sem dúvida, para quem parte da
assistência crítica, é um bom exemplo de como uma produção cultural
contestadora pode ser desfigurada e como é que uma perspectiva de classe (a dos
roteiristas) pode ser recuperada e deformada por outra perspectiva (a do
diretor), transformando-a em produção cultural conformista. Os roteiristas
partiam da perspectiva de Francis e o diretor da perspectiva de Caligari. Nesse
sentido, fica compreensível a transformação e o filme pode ser visto como a
narrativa dominante sobre um discurso crítico da autoridade.
* (Trecho do livro: VIANA, Nildo. Como Assistir um Filme. Rio de Janeiro: Corifeu, 2009).
[1]
Estas informações estão disponíveis em alguns livro sobre história do cinema,
bem como de forma mais detalhada em Kracauer (1988) e principalmente Robinson
(2000). Também é possível conseguir algumas informações preliminares na
Internet, mas com o devido cuidado e cautela neste caso, pois muitas
informações equivocadas e falsas são apresentadas em blogs e outros sites. Por
exemplo, há vários sites que afirmam que o filme foi “escrito” pelo diretor
Wiene ou baseado na obra dele, o que é absolutamente inverídico e que é uma
invenção que não se sabe de onde saiu, pois este diretor nunca foi roteirista
e/ou escritor. Também é comum ver a afirmação de que se trata de um filme de terror,
o que é completamente falso (Viana, 2009a), embora esta interpretação
equivocada tenha base nos escritos de Kracauer e Eisner, que criou um certo
consenso nas representações cotidianas sobre isto. Por isso, as informações
adquiridas via Internet devem ser analisadas criticamente e a fonte deve ser
verificada.
[2]
Obviamente que aqui se trata de uma interpretação correta, ou seja, do que o
filme realmente repassou para os assistentes. Isto, porém, pode ser subvertido
pela assistência projetiva ou assimiladora, transformando o que é conservador
em algo contestador. O próprio Robinson (2000) afirma que o desfecho do filme
não é tão claro quanto afirmaram Janowitz, um dos roteiristas, e Kracauer
(1988), pois na época dominava o ceticismo em relação à autoridade e o público
não aceitaria facilmente tal versão, podendo entender que o final expressa que
Caligari, com sua esperteza, conseguiu ludibriar a todos e internar Francis
como um louco. Este tipo de interpretação, obviamente, não resiste a uma
análise do filme e o que revela, no fundo, não é o que desfecho do filme
apresenta e sim o que o público quer (ou poderia querer) ver, ou seja, como a
assistência projetiva pode perceber o filme. Desta forma, Robinson confunde o
desfecho e seu caráter com o que o público poderia interpretar, de forma
arbitrária.
[3] Os
aspectos formais são produtos da expressão
do personagem que é louco e, portanto, vê as coisas de forma distorcida e por
isso não tem sentido buscar exigir tais formas em outros filmes
expressionistas, pois cada um expressa algo diferente.
ASSISTA
O GABINETE DO DOUTOR CALIGARI - VERSÃO DE CARL MAYER E HANS JANOWITS
(ADAPTAÇÃO DE NILDO VIANA):
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