CAPITALISMO E CINEMA
Nildo
Viana*
Resumo:
o presente artigo discute a relação entre capitalismo e cinema, sob suas
diversas formas. O primeiro aspecto analisado é a produção capitalista do
cinema, visando analisar a constituição social dos filmes e seu envolvimento
com a sociedade capitalista e, em especial, com o capital cinematográfico. O
segundo aspecto analisado é a reprodução fílmica do capitalismo, ou seja, como
que os filmes reproduzem as relações sociais da sociedade capitalista em sua
produção ficcional. O terceiro aspecto é a forma naturalizante dessa
reprodução, expondo o processo de obras ficcionais que naturalizam a sociedade
capitalista. Por último, há uma análise de filmes que apresentam uma versão
ficcional crítica do capitalismo.
Palavras-Chave:
Capitalismo, Capital Cinematográfico, Cinema, Reprodução Fílmica, Crítica.
Abstract: This article
discusses the relationship between capitalism and cinema, in its various forms.
The first aspect analyzed is the capitalist production of film, aiming to
analyze the social constitution of the films and her involvement with
capitalist society and, in particular, the film capital. The second aspect
analyzed is the filmic reproduction of capitalism, ie, as the films reproduce
the social relations of capitalist society in its fictional production. The
third aspect is the naturalizing such reproduction, exposing the process of
fictional works that naturalize capitalist society. Finally, there is an
analysis of films that feature a fictional version of the critique of
capitalism.
Keywords: Capitalism, Film
Capital, Movie, Filmic Reproduction, critical.
O presente artigo busca analisar a relação entre cinema e capitalismo. A
relação entre cinema e capitalismo pode ser observada por vários aspectos. O
primeiro aspecto seria a percepção de que o cinema é um produto do capitalismo
e isto está ligado ao processo de discussão sobre os meios oligopolistas de
comunicação, tal como é destacado por alguns autores[1].
Tendo em vista que um filme é um produto social e histórico, e ainda coletivo,
pois ao contrário de outras formas de arte raramente é produzido
individualmente, sendo geralmente produzido por uma equipe, então é fundamental
entender o seu processo de produção no interior da sociedade capitalista.
Outro aspecto é como o capitalismo é reproduzido no cinema, ou seja, como
os filmes reproduzem as relações sociais do capitalismo, em aspectos mais
particulares ou mais amplos. A reprodução fílmica do capitalismo é algo
natural, pois aqueles que produzem os filmes vivem nesta sociedade e tematizam
questões e fenômenos dessa sociedade, e, mesmo quando pensam outras sociedades,
historicamente anteriores ao capitalismo, o fazem a partir da percepção
produzida nesta sociedade sobre as demais. Assim, o capitalismo produz o cinema
e o cinema reproduz o capitalismo e, dependendo do que se focaliza, irá se
privilegiar o processo social de constituição do cinema e das produções
cinematográficas ou a produção fílmica em si.
Um terceiro aspecto, derivado desse primeiro, é que tal reprodução pode
ser naturalizante, tomando a sociedade capitalista como natural, ou crítica, na
qual o capitalismo é apresentado sob forma questionadora e mostrando suas
contradições e efeitos negativos sobre os seres humanos.
Nesse sentido, as relações entre as produções cinematográficas e a
sociedade capitalista são complexas e realizaremos uma análise de alguns
aspectos fundamentais dessa relação. Ou seja, analisaremos a produção
capitalista do cinema, a reprodução fílmica do capitalismo sob a forma naturalizante
e sob a forma crítica[2].
O Capital Cinematográfico, ou o a Produção
Capitalista do Cinema.
A forma de abordar a questão do cinema enquanto um processo de produção
cultural sempre remete aos termos “indústria cultural” e “indústria
cinematográfica”. Estes termos, no entanto, são problemáticos, pois a idéia de
indústria é relativamente “neutra”, focando mais a forma do que os elementos
essenciais do processo de produção, que é capitalista. A origem dessa
terminologia se encontra na sociologia norte-americana, através da ideologia da
“sociedade industrial”[3].
O mais adequado é trabalhar com os conceitos de capital comunicacional (VIANA,
2008) e capital cinematográfico (VIANA, 2009a; VIANA, 2012). O capital
cinematográfico é muito pouco compreendido, assim como a chamada “indústria
cultural” em geral.
Existem duas concepções da indústria cultural que influenciam a concepção
referente ao capital cinematográfico, chamado como “indústria cinematográfica”:
a concepção apologética e a concepção apocalíptica. A concepção apologética é
caracterizada por buscar exaltá-la e colocar que ela é expressão do público ou
da realidade; a concepção apocalíptica se caracteriza por considerar a
“indústria cultural” como um sistema de dominação ligado aos interesses capitalistas.
Ambas as concepções são equivocadas, embora a última esteja mais próxima da
realidade do que a primeira.
Sem dúvida, o capital comunicacional reproduz os valores e concepções
dominantes e visa o lucro acima de qualquer outra coisa. No entanto, existem
contradições no interior do capital comunicacional. Além dele não poder
controlar tudo o tempo todo, ele precisa garantir o lucro. A concepção por
detrás da produção cinematográfica, ou seja, a mensagem repassada pelo filme, tem
uma importância menor que a necessidade do lucro para o capital cinematográfico.
Por isso, o capital comunicacional produz e divulga filmes, obras de arte,
livros, etc., que são contrários aos interesses, valores, concepções,
representações do capitalismo. Por isso, existe a possibilidade de produção
crítica no interior do capital comunicacional e do capital cinematográfico,
mais especificamente.
Essa dinâmica atua no caso do capital cinematográfico sob forma
específica, mas mantem as características gerais de todo o processo de produção
capitalista no âmbito cultural. Se existe público para filmes críticos, então
ela irá produzir tais filmes. Mas os filmes intencionalmente críticos são
poucos, pois não existe público tão grande assim para tais produções. Além
disso, os cineastas e agentes da produção cinematográfica podem fazer grandes
obras utilizando metáforas, sátiras, etc., tornando o seu caráter crítico de
difícil percepção para os dirigentes do capital cinematográfico, que observarão
apenas o retorno financeiro da produção (ou, no caso de alguns, apenas seus
aspectos técnicos ou a recepção do público). Por último, cabe destacar que
muitos produzem filmes que podem ser interpretados como crítica do capitalismo
sem que os seus produtores tivessem a menor intenção disto.
Assim, o capital cinematográfico não reproduz a dinâmica de qualquer
produção capitalista e seu objetivo fundamental é o lucro. Isso gera uma
contradição no seu interior, pois o capital cinematográfico, sendo um setor do
capital e que compartilha, através dos seus capitalistas, os valores,
interesses, representações, de uma determinada classe, a capitalista, e por
isso a mensagem que gostaria de repassar seria a que é comum para a mentalidade
burguesa. Contudo, ela visa o lucro e existe público que quer outras mensagens
ou que quer variações ou pelo menos formas mais reflexivas de produção fílmica,
tal como os setores intelectualizados da sociedade, gerando diversos públicos
que são levados em consideração quando se produz um filme, mas suas
contradições possibilitam esta produção crítica.
Isto é tão verdadeiro que até mesmo o capital cinematográfico é objeto de
críticas por parte de filmes, inclusive hollywoodianos. Podemos citar, neste
contexto, alguns filmes que realizam tal crítica do capital cinematográfico: Belíssima, Luchino Visconti (Itália,
1951); Desprezo, de Jean-Luc Godard
(França, 1963)[4], O Dia do Gafanhoto, de John Schlesinger
(EUA, 1975), O Mundo Proibido, Ralph
Bakshi (EUA, 1992); Cecil Bem Demente;
John Waters (EUA, 2000), e, principalmente, uma das grandes obras do cinema de
todos os tempos: O Crepúsculo dos Deuses,
Billy Wilder (EUA, 1950), a mais bem feita crítica a Hollywood.
A Reprodução Fílmica do Capitalismo, ou o
Capitalismo na Tela
Existem várias formas de reprodução fílmica do capitalismo, isto é, a
reprodução do capitalismo através do cinema. Podemos destacar, em primeiro
lugar, o filme como reconstituição histórica inintencional, ou seja, o filme,
mesmo que seus produtores não tenham a intenção, acaba reconstituindo a
história de sua época, ou seja, de determinado momento da sociedade
capitalista. Porém, esta reconstituição histórica inintencional é feita sob
variadas perspectivas, dependendo da época, agentes de produção e outros
elementos envolvidos em determinada produção cinematográfica. Outra forma é o
filme que intencionalmente pretende revelar elementos da sociedade capitalista.
Este tipo de filme é mais raro e é, geralmente, mais crítico e forte. Os seus
agentes de produção tentam expressar as relações sociais na sociedade capitalista
e ao fazê-lo, revelam seus problemas, contradições, limitações, consequências.
Outra forma de mostrar o capitalismo através do cinema é por intermédio da
própria história do cinema, isto é, através da sucessão de filmes que assumem
determinadas características, valores, posições, que são típicos da época e são
determinados pela lógica do desenvolvimento capitalista.
No entanto, uma coisa é a intencionalidade dos agentes de produção do
cinema, outra coisa é a interpretação e significação que o público, os críticos
e pesquisadores fazem[5].
Um filme produzido por quem não tem a menor intencionalidade crítica ou de
abordar o capitalismo pode ser considerado, pelo intérprete, como uma metáfora
do capitalismo. A proliferação de filmes de ficção científica que retratam um
futuro sombrio, pode ser interpretada como apenas uma manifestação ficcional da
realidade atual, isto é, do capitalismo. Isto decorre do fato de que o material
(a trama), os elementos constitutivos, a tecnologia e seu processo de produção,
e os agentes da produção (o diretor, os roteiristas e toda a equipe de
produção) respiram o capitalismo e são produtos do capitalismo, e, assim, o que
fazem em matéria de ficção é transportar a realidade da sociedade capitalista
para uma outra realidade que é sua reprodução sob outra forma. Até nos filmes
históricos, que buscam retratar outras épocas, a marca da sociedade capitalista
está presente, embora as roupas estejam fora de moda, as questões de fundo são
as da sociedade capitalista ou as da época interpretadas e apresentadas da
perspectiva de alguém que vive no capitalismo e não consegue escapar das suas determinações.
Em síntese, existe uma diversidade de formas de reproduzir o capitalismo
no cinema, seja focalizando o processo de trabalho, a vida dos trabalhadores, o
desemprego, o mercado, a cidade, as relações amorosas, entre milhares de outros
exemplos, seja focalizando as instituições, valores, efeitos psíquicos, da
sociedade capitalista. É possível uma reprodução da totalidade ou dos aspectos
fundamentais do capitalismo, como também de aspectos secundários ou
aparentemente desligados de seus elementos mais determinantes.
O Capitalismo no Cinema sob a Forma
Naturalizante
Dentre as várias formas que o capitalismo pode ser abordado cinema a mais
comum é a descritiva, isto é, o tipo de produção que apenas reproduz a
sociedade existente. Se tal descrição revela os seus problemas sociais, então
assume um caráter que pode ser considerado com intenção crítica; caso
contrário, se focaliza questões isoladas em si mesmas ou mesmo sem grande
relevância social, ou apenas retrata a sociedade burguesa como algo natural,
então assume a feição apologética com caráter naturalizante. O caráter
descritivo significa que as posições daqueles que fazem a descrição não são explícitas,
são ocultadas, de tal forma que aparenta uma neutralidade, o que, na verdade,
não existe. Reproduzir a miséria dos trabalhadores em um filme é mera descrição
e isto pode ser considerado sob diversas maneiras (mas aqui o problema é da
interpretação e não da mensagem enviada), mas os produtores do filme tinham uma
intencionalidade, que poderia ser mostrar a situação precária de vida,
naturalizar a miséria, denunciar a superexploração, tratar de um fenômeno que
atrairia a atenção do público, etc.
Em cada uma dessas opções, há uma perspectiva de classe e uma concepção
do fenômeno, inclusive posição política, não necessariamente partidária (ligada
a partido político, embora isso também ocorra com bastante frequência). Aqueles
que querem denunciar a superexploração dos trabalhadores são os que estão
preocupados com o “excesso” e querem que alguém, o governo, por exemplo, tome
alguma providência. Já os que, de forma malthusiana, querem naturalizar, objetiva
apenas dizer que a vida é assim mesmo e por isso é preciso ver esta realidade e
deixá-la de lado, pois é preciso se preocupar com outras coisas ou apenas
minimizar com filantropia e coisas semelhantes. Os que querem mostrar a
situação precária de vida dos trabalhadores, apenas se contentam em dizer que
as coisas estão erradas e que talvez seja preciso mais “humanismo”, mais
“filantropia”, mais “políticas sociais”. Diferente é um filme que vai além da
descrição, que mostra o questionamento, ou seja, um caráter crítico, e aponta
para a necessidade e a possibilidade de transformação social. Desta forma, há a
descrição pretensamente crítica e a apologética.
Podemos citar como exemplo do primeiro caso os filmes do chamado
“neorrealismo italiano”, tal como os filmes de Luchino Visconti (Terra Treme, 1948; Rocco e seus Irmãos, 1960), Roberto Rossellini (Roma, Cidade Aberta, 1945), Vittorio de
Sica (Ladrões de Bicicleta, 1948),
Giuseppe de Santis (Arroz Amargo,
1948), entre outros. O neorrealismo foi aceito entusiasticamente por diversos
setores da intelectualidade e da esquerda, mas posteriormente alguns começaram
a perceber as limitações destes filmes, que não ultrapassam a realidade
existente, não apontando para uma crítica mais efetiva e para a concepção da
possibilidade de transformação social. A perspectiva de classe por detrás desta
produção cinematográfica não era proletária e sim ligada às classes auxiliares
da burguesia, unindo interesses de setores da produção cinematográfica com
setores político-partidários, tal como o PCI – Partido Comunista Italiano.
O segundo tipo de filme é o mais comum e é constante nas grandes
produções hollywoodianas, tal como os filmes de ação que pregam a hegemonia
mundial norte-americana, bem com outros filmes que naturalizam as relações
sociais existentes em nossa sociedade, tal como Love Story, Arthur Hiller (EUA, 1970) ou Wind – A Força dos Ventos, Carroll Ballard (EUA, 1992). O primeiro
faz apologia do amor romântico e o torna o centro da vida humana; o segundo
coloca a competição (uma das características fundamentais das relações sociais
capitalistas e da mentalidade produzida por elas) como centro da história e a
vitória como o objetivo fundamental a ser conquistado.
Porém, existem outras formas de reprodução fílmica do capitalismo. Há
também os filmes que retratam momentos históricos específicos, tal como os
filmes mudos de Serguei Eisenstein (O
Encouraçado Potemkim, URSS, 1925; A
Greve, URSS, 1924; Outubro, URSS,
1928) e vários outros que surgiram colocando situações sociais sob a forma de
ficção ou utilizando acontecimentos históricos como base para a produção
cinematográfica[6].
A Crítica do Capitalismo no Cinema
A forma mais importante, no entanto, é aquela reprodução fílmica do
capitalismo que ultrapassa o nível da descrição e deixa explícito o
posicionamento da equipe de produção ou daqueles que conseguem impor sua
posição em determinada produção fílmica. É aquela que não é naturalizante e sim
crítica. Sem dúvida, existem várias formas de crítica social no cinema, desde a
totalizante até a fragmentária, que pode ser moralista ou pessimista (VIANA,
2013). Diversos filmes realizam uma crítica social moralista, tais como
diversos filmes norte-americanos que questionam o trabalho em favor da família,
como O Mentiroso, Tom Shadyac (EUA,
1997), uma de suas melhores expressões. O nosso foco aqui, no entanto, será
apenas a crítica social totalizante, radical, inclusive sem abordar suas
diferenças internas[7].
Este é o caso dos filmes produzidos na Alemanha, ainda durante o cinema
mudo, principalmente os filmes expressionistas. Destacaríamos, deste período,
entre outros, Metrópolis, Fritz Lang,
(Alemanha, 1927); Tartufo, F. Murnau
(Alemanha, 1926); O Gabinete do Doutor
Galigari, Robert Wiene, (Alemanha, 1920), apesar deste último ter seu final
e início deformado pelo diretor (VIANA, 2012). Também é o caso do realismo
poético francês dos anos 30, tal como os filmes de René Clair (principalmente A Nós a Liberdade, França, 1931) e os de
Jean Renoir (principalmente A Regra do
Jogo, França, 1936). É claro que o momento histórico e o caráter incipiente
do capital cinematográfico da época facilitavam a produção destas obras. Os
filmes do cineasta surrealista Luis Buñuel também merecem ser citados neste
contexto, tal como Anjo Exterminador
(México, 1962), entre outros. Os filmes do Western
Spaghetti, de Sérgio Leone, Sérgio Corbucci e Damiani Damiano são outros
exemplos. Alguns focalizam a expansão capitalista nos Estados Unidos, mas a
maioria toma a Revolução Mexicana e a luta dos trabalhadores contra a tirania
dos governos mexicanos.
Há também os filmes de terror de George Romero, tal como A Máscara do Terror (França/Canadá/EUA,
2000) e seus filmes de zumbis e, inclusive, filmes dirigidos por outros
cineastas que são hollywoodianos e desprezados por isso, mas focalizam aspectos
da sociedade capitalista de forma crítica, tal como A Coisa, Larry Cohen (EUA, 1985) e Corrosão – Ameaça em seu Corpo, Phillip Brophy (Austrália, 1993),
entre outros. Inclusive antigos filmes B, como A Pequena Loja dos Horrores, Roger Corman (EUA, 1960), bem como os
filmes de ficção científica dos anos 50 sempre colocando os perigos da
radioatividade e da ambição capitalista que gera o seu uso indiscriminado.
Assim, os filmes de ficção científica, muitas vezes desprezados, bem como
os de terror, revelam aspectos essenciais da sociedade capitalista. Vários
filmes poderiam ser citados neste sentido como Matrix, Andy e Larry Wachowski (EUA, 1999); Mad Max, George Miller (Austrália, 1979); Rebelião no Século 21, Charles Band (EUA, 1990). Entre os filmes de
terror, além dos de George Romero, há os dirigidos por John Carpenter, tal como
Eles Vivem (EUA, 1988); Christine – O Carro Assassino (EUA,
1983); Pesadelo Mortal (EUA, 2005),
que avançam na crítica do capitalismo e alguns filmes fantásticos, como Momo e o Senhor do Tempo, Johannes
Schaaf (Alemanha, 1986), O Fabuloso Mundo
de Billy Liar, John Schlesinger (Inglaterra, 1963); Donnie Darko, Richard Kelly (EUA, 2001), poderiam ser citados como
exemplos de produções cinematográficas críticas[8].
Isto quer dizer, em poucas palavras, que não são apenas os filmes “realistas”
ou os dramas, que reproduzem a sociedade capitalista ou seus aspectos, ou mesmo
que realizam a sua crítica, pois a ficção científica, o terror, o fantástico, o
faroeste[9],
também o fazem.
Sem dúvida, muitos outros poderiam ser citados, tal como os filmes
políticos de Costa-Gravas e de Elia Kazan. Até alguns filmes infantis poderiam
ser citados, como Formiguinha Z, Eric
Darnell e Tim Johnson (EUA, 1998), História
Sem Fim, Wolfgang Petersen (Alemanha, 1988). Também os filmes que abordam
instituições e relações sociais específicas do capitalismo, como A Sociedade dos Poetas Mortos, Peter
Weir, (EUA, 1989) e Um Estranho no Ninho,
Milos Forman (EUA, 1975) no qual se aborda a educação autoritária e o hospício,
respectivamente, contribuem com uma concepção do caráter da sociedade moderna. Uma
série de filmes recentes aborda questões atuais do capitalismo: Clube da Luta, David Fincher (EUA, 1999),
O Show de Truman – O Show da Vida,
Peter Weir (EUA, 1998); V de Vingança,
James McTeigue (EUA/Inglaterra/Alemanha, 2005), entre outros.
Obviamente que alguns filmes se destacam por reconstituir o capitalismo
de forma mais crítica e ampla, tal como é o caso de Momo e o Senhor do Tempo; A
Nós a Liberdade; Quando Explode a
Vingança, Sérgio Leone (Itália, 1972), entre outros. O filme Momo e o Senhor do Tempo mostra não só
como o capitalismo extrai o tempo dos indivíduos até a exaustão, como também
como subverte os valores, abole a comunicação entre os seres humanos e corrompe
os indivíduos. Já o filme A Nós a
Liberdade mostra o caráter destrutivo do trabalho alienado, da prisão e da
escola, além também de opor valores antagônicos e outros aspectos da sociedade
capitalista.
Em síntese, existe uma diversidade de filmes sobre o capitalismo. Seja
focalizando o processo de trabalho, a vida dos trabalhadores, o desemprego, o
trabalho alienado, seja focalizando as instituições, valores, efeitos
psíquicos, da sociedade capitalista. Há diversos filmes sobre acontecimentos
históricos, sobre juventude, sobre meios oligopolistas de comunicação, sobre
guerra, sobre destruição psíquica dos indivíduos, sobre meio ambiente, entre
inúmeras outras questões sociais importantes em nossa época.
No entanto, apesar disso, a formação cultural e a não-reflexão faz com
que muitos filmes não sejam percebidos como realmente são, ou não percebendo o
que ele mostra. Esse já é o problema da recepção dos filmes. Muitos filmes
críticos são vistos como se não fossem nada mais do que mera ficção e isso é
mais forte no caso de filmes sem intencionalidade crítica que mostram aspectos
da sociedade capitalista que nem sequer são percebidos, o que remete para o
problema da forma de assistência dos filmes, pois isto, em parte, é derivado da
forma de assistência contemplativa, mecânica ou formalista que grande parte dos
assistentes realiza das obras cinematográficas (VIANA, 2009b). Tal percepção é
reforçada pelo preconceito e o elitismo cultural de muitos analistas e críticos
do cinema.
Considerações Finais
Essas reflexões sobre a relação entre cinema e capitalismo nos permitem a
chegar a algumas conclusões. A mais importante delas é perceber que essa
relação está em todos os filmes, sob diversas formas, que revelam distintas
possibilidades de assistência e análise. A sociedade capitalista interfere em
todos os seus produtos culturais, seja no seu processo de produção (desde a
formação cultural dos indivíduos que realizam tal produção até o processo de
transformação da cultura em mercadoria, o que pressupõe financiamento,
distribuição, venda, etc.) seja no seu conteúdo, que reproduz, desde a forma
naturalizante já que é o ar que se respira até a forma crítica.
O amplo universo de material fílmico existente traz uma multiplicidade de
possibilidades de análise da sociedade capitalista, desde que se supere as
formas prejudiciais de assistência, para o caso dos que não são pesquisadores
do cinema, através de uma assistência crítica (VIANA, 2009b) ou que se supere
as análises limitadas que são produzidas por muitos pesquisadores embasados em
concepções ideológicas ou no mero descritivismo pobre, que é dominante (VIANA,
2009a; VIANA, 2012). Ou seja, é preciso, no caso da assistência cotidiana, de
uma assistência crítica e, no caso de pesquisadores, possuir recursos
teórico-metodológicos adequados para realizar a análise fílmica. O capitalismo
está no filme, enxerguem ou não aqueles que o assistem.
* Professor da
UFG – Universidade Federal de Goiás e Doutor em Sociologia pela UnB –
Universidade de Brasília. Email: nildoviana@ymail.com
[1]
Destacaríamos a obra inaugural da reflexão sobre indústria cultural, de Adorno
e Horkheimer (1986) e alguns comentários contemporâneos: Santos (2008); Souza
(2008); Viana (2008). Uma das melhores análises, no nível teórico, sobre o
capital cinematográfico, é a de Prokop (1986).
[2] A
bibliografia que aborda tais questões são problemáticas devido aos
procedimentos teórico-metodológicos adotados. As abordagens que partem da
análise da ideologia nos filmes é problemática, não só por usar o termo
ideologia de forma equivocada e em contradição com sua base teórica, no caso o
marxismo, como é o caso de Lebel (), como também por seus recursos
metodológicos e teóricos serem precários. Os filmes não podem ser ideológicos,
no sentido marxista do termo, e sim ideologêmico, pois não manifestam as
ideologias existentes em toda sua complexidade ou em sua totalidade e sim
fragmentos delas, ideologemas, tal como no filme Teoria Mortal (), que reproduz
o ideologema da luta pela sobrevivência (VIANA, 2013).
[3] A
ideologia da sociedade industrial foi constituída por diversos sociólogos
norte-americanos e acabou tendo alguns reprodutores na Europa Ocidental. Um dos
autores que se destaca na produção dessa ideologia é Dahrendorf (1977). Os
representantes da Escola de Frankfurt acabaram, apesar de suas divergências com
tais sociólogos, reproduzindo parcialmente sua linguagem, tal como Herbert
Marcuse.
[4] Os
filmes Belíssima e Desprezo são europeus e estão fora do
circuito hollywoodiano, mas sua produção foi realizado através do capital
cinematográfico italiano e francês, respectivamente, e embora seja um capital
diferenciado, por não ter o mesmo poderio que o norte-americano, como também
ter outro público principal, mas não mantém os mesmos interesses que o grande
capital cinematográfico mundial
[5]
Sobre isso, consulte-se Viana (2012).
[6]
Existem também os documentários que ou focalizam aspectos do capitalismo ou
apresentam uma concepção mais abrangente. O documentário Surplus, Erik Gandini (Suécia, 2003), por exemplo, coloca em
questão o consumismo, apesar de partir de posições questionáveis (o
primitivismo), assim como The Corporation,
Mark Achbar (Canadá, 2003), que mostra a importância e força das grandes
corporações. Porém, não consideramos que
o documentário seja um filme, pois este é uma obra de arte, logo, uma
“expressão figurativa da realidade” (VIANA, 2007) e por isso, tal como
colocamos em outro lugar, não se caracteriza como filme (VIANA, 2012).
[7] No
interior de uma crítica totalizante do capitalismo, podemos dividir entre a crítica
radical e sua inspiração pode ser o marxismo, o anarquismo, etc., e a crítica
utópico-abstrata, inspirada num humanismo abstrato que para da ideia da bondade
natural do ser humano (VIANA, 2013).
[8]
Este é o caso de vários filmes que são extremamente criticados, tal como Mulher-Gato, Jean Christophe Comar (EUA,
2004), por vários motivos, tal como sua pobreza formal (que, realmente, neste
aspecto deixou muito a desejar), etc., mas revelam aspectos importantes da
sociedade capitalista, tal como o capital farmacêutico e sua busca do lucro a
qualquer custo (VIANA, 2009b; MARQUES, 2009).
[9]
Aqui citamos apenas os filmes de faroeste do cinema italiano, mas há filmes
como os de John Ford, tal como No Tempo
das Diligências (EUA, 1939); Vinhas
da Ira (EUA, 1940), Como Era Verde
Meu Vale (1941), que fazem parte da tendência de reprodução e crítica
intencional do capitalismo.
Referências
ADORNO, Theodor e HORKHEIMER,
Max. Dialética do Esclarecimento. 2ª edição, Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1986.
DAHRENDORF,
Ralph. Sociologia e sociedade industrial. In FORACCHI, Marialice e MARTINS,
José de Souza (orgs.). Sociologia e
sociedade. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1977.
LEBEL, Jean-Paul. Cinema
e Ideologia. Lisboa: Estampa, 1975.
MARCUSE,
Herbert. Ideologia da Sociedade
Industrial. 4ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
MARQUES, Edmilson. Para
Interpretar as Produções Cinematográficas. In: VIANA, Nildo. Cinema e
Mensagem. Análise e Assimilação. Porto Alegre: Asterisco, 2012.
PROKOP, D. O Papel da
Sociologia do Filme no Monopólio Internacional. In: FILHO, Ciro M. (org.). Prokop.
São Paulo: Ática, 1986.
SANTOS, Jean Isídio. Cinema
e Indústria Cultural. In: Viana,
Nildo (org.). Indústria Cultural e Cultura Mercantil. Rio de Janeiro: Corifeu,
2008.
SOUZA, Erisvaldo. A
Renovação da Teoria da Indústria Cultural em Prokop. In: Viana, Nildo (org.). Indústria Cultural e Cultura Mercantil.
Rio de Janeiro: Corifeu, 2008.
VIANA, Nildo. A
Concepção Materialista da História do Cinema. Porto Alegre: Asterisco,
2009a.
VIANA, Nildo. A
Esfera Artística. Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. Porto
Alegre: Zouk, 2007.
VIANA, Nildo. Cinema
e Mensagem. Análise e Assimilação. Porto Alegre: Asterisco, 2012.
VIANA, Nildo. Como
Assistir um Filme? Rio de Janeiro: Corifeu, 2009b.
VIANA, Nildo.
Imaginário e Ideologia. As Ilusões no Pensamento Complexo e nas Representações
Cotidianas. Revista Espaço Livre. Vol. 08, num. 15, jan-jul. 2013.
VIANA, Nildo. Para
Além da Crítica dos Meios de Comunicação. In: VIANA, Nildo (org.). Indústria
Cultural e Cultura Mercantil. Rio de Janeiro: Corifeu, 2008.
VIANA, Nildo. Quadrinhos e Crítica Social. O Universo
Ficcional de Ferdinando. Rio de Janeiro: Azougue, 2013.
---------
Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Capitalismo e Cinema. ALCEU - Revista de Comunicação, Cultura e Política. PUC-RJ, v. 14 -
n.27 - p. 66 a 76 - jul./dez. 2013.
Disponível em: http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/5alceu27.pdf
Nenhum comentário:
Postar um comentário