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Informe e Crítica

10 de nov. de 2018

A Absorção do Estado pelo Capital em “Rebelião no Século 21”



A Absorção do Estado pelo Capital 
em “Rebelião no Século 21”*

Nildo Viana 



Passamos agora de 1961 para 1990, ano de lançamento de Rebelião no Século 21, ou seja, 29 anos depois. Trata-se de outro período histórico, com novas relações sociais, embora a essência da sociedade capitalista continue a mesma. Trata-se de uma sociedade muito mais avançada tecnologicamente, que já possui recursos tecnológicos muitos superiores para as produções cinematográficas, embora o acesso a eles seja restrito, devido à hierarquia existente no interior da sociedade capitalista e também no capital cinematográfico. 

A partir de 1980, quando se inicia um processo de mudanças sociais que iria se ampliando até chegar aos anos 1990, surgem produções de baixo orçamento e algumas destas de baixa qualidade, principalmente no aspecto formal. E também uma época em que a ficção científica ganha um novo fôlego, melhorando seu status e ganhando superproduções. É desta época filmes como Mad Max, George Miller (Austrália, 1979); Matrix, Andy e Larry Wachowski (EUA, 1999), Blade Runner –  O Caçador de Andróides (EUA, 1982). As séries japonesas para TV também ganham destaque e público, apesar de sua péssima qualidade e repetição exaustiva, mostrando monstros e robôs gigantes, que estarão presentes em filmes A, B e C.


a) Contextualização

O filme Rebelião no Século 21, de Charles Band (EUA, 1990), cujo título em inglês é Crash and Burn, é mais um entre os inúmeros filmes deste diretor. Ele é rotulado como um diretor de filmes trash, sendo muito criticado e até mesmo sofrendo qualificativos nada elogiosos em sites da internet. Charles Band dirigiu um filme interessante que os cegos mentais não podem enxergar. 

Esta época é marcada por um conjunto de mudanças sociais. O novo período histórico que começa a emergir a partir dos anos 1980 com a ascensão do neoliberalismo, toyotismo e neoimperialismo, que caracterizam o regime de acumulação integral, provoca mudanças culturais significativas (Viana, 2003). Para o cinema, a mudança fundamental foi a hiper-mercantilização cultural que ocorre nesse período e atinge a produção fílmica.

O neoliberalismo emergente a partir do Governo Ronald Reagan vai se consolidando nos Estados Unidos e se caracteriza por ser um Estado privatista e de defesa do livre mercado, bem como por se repressivo, ou como coloca o sociólogo Löic Wacquant, um “Estado Penal” (Wacquant, 2001). Esse caráter repressivo seria expresso na ideologia da “tolerância zero”, criada neste período, e nas práticas repressivas concretas do Estado norte-americano.

b) Informações Preliminares

As informações preliminares sobre este filme não são muitas. É um filme que foi dirigido por Charles Band, que chega a dirigir e produzir até 10 filmes por ano, a quem já fizemos uma referência, e que é produzida pela Full Moon Features, produtora especializada em filmes de baixo orçamento, ou seja, filmes C [1]. Band também produziu filmes em outros gêneros e alguns usando pseudônimo, tal como A Fuga dos Monstros, Robert Talbot (EUA, 1996), um filme infantil usando stop-montion [2] e foi produtor e responsável por um grande número de produções de filmes C.

Estes filmes possuem efeitos especiais limitados devido aos recursos escassos e seu aspecto formal tende a deixar a desejar. Neste caso, Charles Band é famoso por usar stop-motions que não são muito verossímeis e isto é prática comum devido ao baixo orçamento. Assim, os problemas formais neste tipo de filme são comuns. O conteúdo geralmente também apresenta problemas, pois a equipe de produção, além da falta de recursos, é composta por aqueles que não conseguiram um espaço nas grandes empresas cinematográficas, possuem salários mais baixos, entre outros problemas derivados. 

Porém, dependendo da equipe de produção o filme terá maior ou menor êxito quando finalizado. O preconceito contra os filmes C [3], ou seja, que ficam distantes das superproduções centrais do capital cinematográfico, é reproduzido principalmente nos meios intelectualizados. É comum se pensar que todo e qualquer filme C é ruim. Isto é um equívoco, tal como prova este caso.

c) Identificação da Trama

A trama do filme é a luta dos rebeldes resistentes contra a Unicon, que provoca a situação problema marcada pela perseguição dos seres humanos pelos sintéticos [4] . A Unicon domina e controla os EUA e mais nove países, realizando uma espécie de ditadura privada, no qual uma empresa capitalista assume o papel que pertencia ao Estado. Isso gera a resistência, realizada pela UIL – União Independente de Libertação. A trama se desenvolve mostrando como a Unicon controla a sociedade civil, inclusive os meios de comunicação, e amplia ainda mais a degradação ambiental. Os personagens principais (Lathan e Arren) são da UIL, o que fica explícito posteriormente, e Tyson Keen acaba ajudando Arren e aderindo a UIL. A perseguição dos sintéticos aos seres humanos acaba ocupando a maior parte do filme. 



d) Identificação da Situação-Problema e da mensagem associada

A situação-problema é justamente o perigo que os seres humanos correm devido ao domínio da Unicom. Isto cria a outra situação problemática, que é a mais presente no filme, que é a perseguição aos seres humanos pelos sintéticos e sua busca de sobrevivência. Assim, os sintéticos são representantes da Unicon, do capital monopolista, e perseguem os resistentes. 

A mensagem associada revela que o domínio do capital não somente degrada o meio ambiente e as relações sociais, como instaura um regime ditatorial para se reproduzir. O domínio total da “livre iniciativa”, das empresas capitalistas privadas, provoca a destruição do planeta e uma vida medíocre e decadente. Uma percepção sombria do futuro caso tal domínio continue é apresentada (ou seja, se houver continuação em relação ao que ocorre em 1990, ano que o filme foi produzido).

e) Identificação da Resolução da Situação-Problema

A resolução da situação-problema ocorre com a destruição dos sintéticos e da fuga dos dois personagens sobreviventes, que vão se encontrar com outros membros da UIL, o que significa um fortalecimento da resistência e, portanto, uma esperança de que é possível uma mudança. Assim, no filme, a situação problemática principal é resolvida com a derrota dos sintéticos, enquanto que a outra, a do domínio da Unicom, fica não resolvida, mas os dois personagens humanos restantes partem para se unir com os resistentes, o que significa a possibilidade da derrota da Unicom. Neste sentido, há a mensagem da necessidade da luta e da possibilidade da vitória.

f) Relação entre Ficção e Realidade Social

O universo ficcional de Rebelião no Século 21 parece bem distante da realidade social contemporânea. O filme parece “pura ficção”. Porém, uma análise mais cuidadosa contribui para superar esta percepção superficial e entender que o filme manifesta a realidade social contemporânea e de forma crítica.

A trama mostra o processo de perseguição dos dissidentes, a força de um regime marcado pelo domínio do capital monopolista, que pouco se distingue do atual domínio oligopolista em nossa sociedade. O filme apresenta uma ficção que é homóloga à realidade contemporânea, só que mais explícita e intensa. As empresas capitalistas oligopolistas dominam a sociedade civil, provocam destruição ambiental que atinge os seres humanos, controlam os meios de comunicação, colocam a ciência e a educação a serviço dos seus interesses, visando produzir ideologias e reforçar as representações cotidianas ilusórias para facilitar a dominação, eliminam os que resistem. 

Trata-se de um filme de 1990, período do neoliberalismo hegemônico a nível mundial, no qual se pregava o “fim do Estado-nação” e a “globalização”, ideologias hegemônicas na época. Este período é marcado, portanto, pela expansão da ideologia do livre mercado, privatização de empresas estatais, etc. 

Isto é importante para entendermos que o filme ocorre em 2030, mas a referência em matéria de passado no filme é 1990, ou seja, há um paralelo entre 1990 e 2030. O paralelismo não seria casual, pois 1990 é apresentado no filme como sendo o estopim de 2030 e, neste sentido, o último seria a radicalização do primeiro e, logo, é possível postular que a intenção do filme é realizar uma crítica do capitalismo contemporâneo (1990, data da produção do filme). O que o filme apresenta é a privatização do mundo e a devastação ambiental derivada disso. 

Porém, para saber se a intenção crítica existia, seria necessário mais informações sobre o processo de produção social do filme e sobre a equipe de produção. Mas a crítica existe explicitamente, quando se afirma, por exemplo, que se assiste “a mesma porcaria na TV que há 40 anos”, ou seja, isto quer dizer que em 2030 a programação de TV é péssima e que isso é a mesma coisa que ocorria em 1990. Aqui o paralelismo é explícito.

Os valores objetivados no filme são os da liberdade, principalmente. A luta contra a ditadura da Unicom pelos personagens principais revela isto. Também o preconceito apresentado contra as prostitutas pelo apresentador de programas Winston demonstra este como algo negativo, sendo um desvalor. Da mesma forma, o programa televisivo educativo apresentado por Parice que é comparada por Lathan com “má educação” também expressa o processo educacional ideológico como desvalor.

As concepções apresentadas no filme apontam para uma percepção crítica da ditadura, das empresas privadas gerirem a sociedade civil, da tutela dos meios de comunicação e educação por tais instituições.

F) Reflexão Pós-Assistência

Em Rebelião do Século 21 temos mais um filme de ficção científica que ocorre no futuro apresentando uma previsão sombria para a sociedade humana, sendo a manifestação de ucronia. Hoje se utiliza com mais freqüência o termo “distopia”, que, no entanto, é problemática. Etimologicamente, distopia seria o mesmo que utopia. Porém, o significado que se busca atribuir a distopia é o de algo não utópico, ou o seu contrário, pois se utopia é a sociedade desejável, a distopia seria a indesejável. A distopia se define pela utopia, como o seu par antagônico. A utopia é uma crítica da sociedade existente e a proposta de uma nova sociedade. 

Já a palavra ucronia é usada como significando anacronismo, relativo a algo inserido no passado que não existiu. Nesse caso, a palavra anacronia é mais precisa. No entanto,a expressão ucronia aqui é empregue de forma diferente da usual. Aqui ela expressa uma crítica da sociedade existente, tal como a utopia, mas que ao invés de apresentar um projeto alternativo de sociedade, mostra a sociedade atual no futuro, seja como sua conseqüência (previsão de radicalização ou decadência), seja como metáfora, isto é, a construção fictícia de uma sociedade do futuro é apenas a atual sociedade mostrada de forma crua e alegórica.

A palavra distopia, por sua vez, serviria apenas para expressar a concepção conservadora, declaradamente não utópica ou antiutópica, do futuro, não comportando uma crítica da sociedade existente e colocando o futuro como a não-utopia, seja pensando na imutabilidade da sociedade atual ou sua radicalização sem isso aparecer como algo negativo, mas positivo, ou, ainda, que ela faz a atual sociedade ser desejável. 

No cinema, exemplo de ucronia existem vários, geralmente inspirado em obras literárias, tal como 1984, Michael Radford (Inglaterra, 1984), mas também THX 1138, Mad Max; Matrix, entre outras. A manifestação de utopia no cinema é algo raríssimo, mesmo porque não traria uma trama tão envolvente, mas há algumas que não apresentam exatamente utopias e sim as limitações e dificuldades de algumas tentativas e projetos utópicos, tal como A Praia, Danny Boyle (EUA, 1999) ou Utopia, Leo Joannon (EUA, 1954), uma comédia com o Gordo e o Magro.  

O significado do filme Rebelião no Século 21 é, por um lado, a crítica da sociedade norte-americana e do neoliberalismo; por outro, é manifestação de valores e concepções divergentes das dominantes, principalmente se lembrarmos que os anos 1990 foram marcadas por ampla hegemonia neoliberal, que até passou a ser chamado “pensamento único”, o que só iria diminuir após 1996 e principalmente 1999 e a emergência do chamado “movimento antiglobalização”. 

Desta forma, o filme de Charles Band é uma ucronia que revela a crítica da sociedade capitalista contemporânea e a necessidade da luta e superação do domínio do capital sobre a sociedade civil. Tendo em vista que o filme foi produzido nos Estados Unidos, onde reina o pensamento conservador e o pensamento crítico é pouco cultivado, numa época de conservadorismo triunfante e radicalizado, então o filme ganha também uma importância histórica que deve ser ressaltada. Assim superamos também a idéia de que este filme, tal como qualquer outra, seja “ficção pura”. Ele é produto social e histórico, filho de seu tempo, e, ao mesmo tempo, agente sobre ele.

G) Avaliação

Assim, a reflexão que se pode fazer sobre este filme é a de que ele cumpre um papel fundamental de demonstrar o poder do capital e seu domínio sobre a sociedade civil. No caso, o filme demonstra a absorção do Estado pelo capital num estágio de capitalismo avançado. Ele realiza uma reprodução da realidade da sociedade capitalista atual e, ao mesmo tempo, permite pensar o futuro como um processo de aprofundamento dos efeitos prejudiciais da destruição ambiental e das relações sociais fundadas na acumulação de capital. Também apresenta valores divergentes dos valores dominantes e uma concepção crítica da realidade social contemporânea.

O aspecto formal do filme revela que não se trata de uma superprodução com grandes efeitos especiais. No entanto, também não é uma produção pouco verossímil, como grande parte dos filmes C. A verossimilhança não está ausente, mesmo porque o filme se passa, em sua maior parte, na Estação de TV e os únicos elementos que seriam necessários para garantir seus aspectos futurísticos seria o Robô gigante DV-8 e sua aparição, que não comprometem a verossimilhança. A organização da trama e alguns elementos formais são bem estruturados, o que significa que neste aspecto o filme não chega a ser espetacular mas também não compromete e tem vários elementos elogiáveis.

Em síntese, o filme, em sua totalidade, é superior a diversas superproduções hollywoodianas. Um filme C que é melhor do que inúmeros filmes A. Desta forma, aliado com o seu caráter crítico e ousado para o contexto social, se torna um dos principais filmes dos anos 1990, por mais que isto possa espantar os preconceituosos em relação ao diretor Charles Band.

* Trecho do livro:

VIANA, Nildo. Como Assistir um Filme? Rio de Janeiro: Corifeu, 2009.

1 - Estes filmes são geralmente chamados “trash” ou “filme B”, embora a primeira denominação nada acrescenta a não ser o preconceito e a última seja equivocada, já que tais filmes pertenciam à outra época e eram realizados pelas grandes produtoras para passar antes de um filme principal, que seria o filme A, tal como colocamos anteriormente. 

2 - Tipo de animação que usa modelos reais, tal como massa de modelar (massinha) que são movimentados e fotografados quadro a quadro. Em alguns casos os personagens ganham verossimilhança e em outros não, dependendo de diversos elementos. O filme A Fuga das Galinhas, Peter Lord e Nick Park (EUA, 2000) é um exemplo de filme que usa stop-motion. A verossimilhança é maior quando todo o filme é produzido desta forma, mas quando é apenas parte, como A Fuga dos Monstros, aí o efeito é bem menor, e isto se amplia quando o boneco é mau feito e/ou o personagem é pouco verossímil.

3 - Esta conceituação é bem mais adequada do que “trash” (“lixo” em português, que revela o preconceito na própria denominação) e do que Filme B, denominação inexata e descontextualizada historicamente. Já discutimos isto de forma exaustiva, basta conferir o primeiro capítulo.

4 - Robôs de aparência humana, também chamados de “sinthoydes”.





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