Um filme é uma manifestação social e do social. Aqui apresentaremos algumas breves análises de filmes numa perspectiva crítica, além de divulgar e comentar obras sobre cinema.
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Em quarta temporada, 'Black Mirror' questiona relações humanas essenciais
Luciana Coelho
Qual o seu maior medo? Perder o filho? Ser perseguido e acossado? Se
descobrir vigiado e ser punido por aquilo que julgava estar fazendo em
privado? Ser manipulado pelos desígnios de outra pessoa? Ou nunca
encontrar sua alma gêmea, fadado a um sem-fim de relações inócuas?
"Black Mirror", a série criada pelo britânico Charlie Brooker que questiona os reveses da nossa simbiótica relação com a tecnologia, volta à Netflix nesta sexta (29) com uma quarta temporada igualmente provocativa, embora menos ambiciosa e inspirada que as anteriores.
Se antes no centro da série estavam nosso comportamento como grupo e a
relação com hardwares e softwares em si, a atenção, ao menos nos
episódios mais bem sucedidos da nova leva, recai sobre as relações
humanas essenciais (família, sexo, trabalho) e como as temos filtrado
por meios nem sempre benignos.
O trunfo é "Arkangel", episódio dirigido por Jodie Foster, que já
trabalhara atrás da câmera para a plataforma de streaming em dois
episódios de "Orange is the New Black" e um da proscrita "House of
Cards".
Na estreia da temporada, ela aborda o laço mãe e filha e o medo atávico
que os pais têm de perder a prole, no sentido literal e figurado.
Após ver a filha pequena sumir em um parquinho, uma mãe (Rosemarie
DeWitt) resolve oferecer a menina como cobaia para uma empresa de
monitoramento parental. O produto em teste é um implante com um filtro
similar ao que impede crianças de assistirem a programas inadequados
para sua idade, mas que a poupa do mundo real.
Em "Hang the DJ", que evoca Smiths e faz lembrar o capítulo mais pop da
temporada anterior, "San Junipero", um casal se submete a um aplicativo
de namoro que dita do momento do primeiro encontro ao que comerão e o
tempo de vida que terá o relacionamento, até que se ache o parceiro
definitivo. Pode ser superlativo, mas não é nada tão diferente do que
temos em curso.
No mais estrelado dos seguimentos, "USS Callister", um programador
genial prende versões virtuais de seus afetos e desafetos em um jogo que
emula o visual "Star Trek", no qual ele tem todos os poderes e glórias.
Jesse Plemons, Jimmi Simpson e Cristin Milioti, que nos últimos anos se
destacaram como coadjuvantes em "Breaking Bad", "WestWorld" e "How I Met
Your Mother", respectivamente, estão no elenco.
Os episódios não são aterradores como nas demais temporadas, talvez por tratarem mais de presenças do que de ausência; mais de relações comuns do que de pontos fora da curva.
Mesmo assim, continuam eficazes ao nos fazer questionar se temos usados a
tecnologia para benefício nosso e de outras pessoas. É um bom jeito de
encerrar este ano.
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Publicação original:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/lucianacoelho/2017/12/1946743-em-quarta-temporada-black-mirror-questiona-relacoes-humanas-essenciais.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsfolha
Filme, "O Jovem Karl Marx".
Direção: Raoul Peck.
Ano: 2017. Legenda em português: Nildo Viana
Veja comentário sobre o filme: Karl Marx no Cinema - http://informecritica.blogspot.com.br/2017/08/karl-marx-no-cinema.htmlhttp://informecritica.blogspot.com.br...
O Filme "O Jovem Karl Marx" apresenta parte da juventude de Karl Marx, de 1842 até 1848, sua vida pessoal, dilemas, bem como as polêmicas e lutas políticas em anos conturbados politicamente e sua passagem e expulsão de diversos países (foi expulso da Alemanha, França e Bélgica). Dirigido por Raoul Peck, diretor haitiano e que ficou conhecido com seu documentário "Eu não sou seu negro", que tematiza a questão racial, é um filme extremamente importante por destacar uma das figuras mais famosas da história do pensamento ocidental e das lutas políticas da modernidade. O destaque do filme é a luta de Marx para fazer avançar o movimento operário, numa época dominada pelo "socialismo sentimental", o que o faz, ao lado de Engels, entrar num embate político e intelectual, cujo resultado foi o enfraquecimento do utopismo e constituição de uma expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado, o marxismo. O filme ajuda a compreender melhor Karl Marx, o seu contexto histórico e evolução política e intelectual.
O filme foi exibido, no Brasil, pioneiramente pelo Ruptura - Espaço Cultural (http://rupturaespacocultural.blogspot...) e agora é disponibilizado gratuitamente no Youtube.
Veja também:
A teoria social de Karl Marx (https://www.youtube.com/watch?v=nWq5O...).
O que é marxismo? (https://www.youtube.com/watch?v=cs6ya...)
A Ideologia segundo Marx (https://www.youtube.com/watch?v=5mBwk...)
Karl Marx: Comunismo e Autogestão Social (https://www.youtube.com/watch?v=j1xqb...)
O filme “O Jovem Karl
Marx” (Raoul Peck, França/Alemanha, 2017) aborda um determinado período da
vida de um dos mais conhecidos e polêmicos pensadores da história da
humanidade, bem como um não menos controverso militante revolucionário. Marx
teve uma vida atribulada, não apenas pela luta política e polêmicas
intelectuais, mas também pelas relações pessoais e situações de privação
material pelas quais experimentou. A sua obra teve repercussão em círculos
políticos e intelectuais restritos e ligados ao movimento operário de sua época
e isso se ampliou com a publicação de O
Capital e outros processos sociais e culturais, mas ele nunca foi, em vida,
um pensador aclamado e reconhecido pelo chamado “grande público” ou pelos
hegemônicos no interior da classe intelectual. No final de sua vida, mesmo com
a ampliação de sua presença intelectual, ele ainda tinha o reconhecimento que viria
a ter posteriormente.
Quando ele escreveu O
Capital, colocou as duas formas pelas quais tentaram minimizar a
importância de sua obra: o silêncio e a pseudocrítica. Essas formas se repetem
historicamente em relação a outros casos. O silêncio significa fazer de conta
que determinada obra ou concepção não existe ou não tem importância e a
pseudocrítica é a tentativa de desqualificar a obra ou o autor (e a substituição
da ideia pelo ataque pessoal é uma das formas mais baixas e desprezíveis de
tentar “ganhar um debate” ou marginalizar um intelectual ou pensador). Apesar
disso, a importância real da obra de Marx e o apoio e obra de alguns indivíduos
tornaram possível a popularização de sua teoria. No entanto, junto com isso
veio a vulgarização e deformação (mais fácil depois que o pensador morre, pois
ele não pode, nesse caso, corrigir os seus “intérpretes” e “seguidores”), sendo
que a vulgarização é uma tendência da popularização e ela traz em si elementos
de deformação. No entanto, há uma deformação mais profunda que emerge com os
chamados “intérpretes canônicos” e simplificadores (mais acessíveis do que o
pensador em questão), ligados a interesses, como foi o caso das deformações
social-democrata, leninista (e derivados: stalinista, trotskista, maoísta,
etc.).
Assim, houve um reconhecimento posterior de Marx, chegando,
inclusive, a tornar-se “moda” e “hegemonia” em determinados momentos e lugares
(como no capitalismo estatal ou na década de 1970 na América Latina, nos meios
políticos e intelectualizados), mas através das versões deformadas do seu
pensamento. Marx tornou-se um pensador clássico da sociologia, economia,
filosofia, etc. e influente nas mais diversas ciências humanas e até em algumas
ciências naturais. Isso se deve, em parte, à sua erudição e força de suas
ideias, em parte a apropriação do seu pensamento por diversos setores da
sociedade com distintos interesses. Tratava-se, na maioria absoluta dos casos,
de um Marx domesticado, mais um cientista ou então um político revolucionário
tão banal quanto os demais que povoam o barco imaginário das celebridades de
esquerda.
Nesse contexto, um filme sobre Karl Marx surpreende. E isso
mais ainda na atual conjuntura mundial, onde o capitalismo encontra
dificuldades em manter o seu atual regime de acumulação (integral) e sua forma
política, o neoliberalismo, e que por isso acaba tendo que tomar medidas
extremas para combater a desestabilização, assumindo a forma discricionária e
executando políticas de austeridade. Numa época em que a hegemonia convencionou
não só a descartar Marx em favor de modismos acadêmicos fúteis e superficiais,
sob o ridículo rótulo de “pós-modernismo” (pós-estruturalismo) e derivados e
semelhantes (multiculturalismo, neoliberalismo, gênero, identidades, etc.), como
também, como parte desse processo, desenvolveu fortes tendências que defendem o
irracionalismo, a recusa da teoria, o pragmatismo, o praticismo, etc.
No entanto, essa situação é contraditória. Por um lado, a
hegemonia burguesa, fundada atualmente no paradigma subjetivista, domina
absoluta, com poucas vozes dissonantes, mas, por outro, o regime de acumulação
integral entra num período de desestabilização que ameaça a se tornar uma nova
crise do capitalismo. A crise no capitalismo pode e tende, efetivamente, a se
tornar uma crise do capitalismo[1].
Nesse contexto, alguns sintomas mostram o que tende a vir pela frente. No
presente encontramos sinais da tendência que constituirá o futuro.
O filme de Raoul Peck é um destes sinais. O filme, em si,
retrata a vida e os embates políticos e intelectuais (inseparáveis e só na
mente dos ingênuos e ignorantes o mundo das ideias está separado do mundo real
e da luta política) que vai desde 1842 até 1848. O filme surpreende não só pelo
tema, mas também pela abordagem e, ainda, por sua atratividade. A abordagem
poderia ser mais uma deformação do pensamento e posição política de Karl Marx,
caso se inspirasse em algumas das formas do pseudomarxismo. No entanto, isso
não ocorre, a não ser alguns deslizes e anacronismos[2],
alguns perdoáveis por ser uma obra ficcional. A atratividade[3] do
filme se deve à competência do diretor que soube dar vida e animação ao filme,
sem repetir o que é comum em filmes intelectualizados produzidos por certos
diretores europeus.
O filme de Raoul Peck, cineasta haitiano[4], é
uma obra ficcional, sobre um indivíduo complexo que foi uma figura histórica e
política marcada pela polêmica, e baseado em acontecimentos reais. Esses
acontecimentos reais são trazidos para o mundo ficcional e são complementados por
elementos ficcionais adicionais, especialmente nos detalhes dos diálogos e
certos acontecimentos específicos.
Trata-se de um filme muito interessante e é importante para
servir de introdução ao pensamento de Marx e elementos de sua biografia (o
período abarcado de 1842 até 1848) e ainda tem o elemento adicional de ser útil
pedagogicamente, podendo ser utilizado em sala de aula sob diversas formas e
com diversos objetivos.
O filme tem inúmeros aspectos que poderiam ser discutidos,
mas não será possível discutir todos, embora nossa breve reflexão aponte para
vários deles, especialmente os que consideramos mais importantes. No entanto, no
presente texto, vamos focalizar a contribuição do filme para uma discussão e
compreensão do indivíduo Karl Marx e do seu pensamento.
Quem Foi o “Jovem Marx”?
O filme retrata a vida de Marx de 1842 a 1848 e foi
intitulado “O Jovem Karl Marx”. Isso, obviamente, remonta a ideia de que
existiu um “jovem Marx” e um “Marx da maturidade”[5].
No fundo, o chamado “corte epistemológico” no pensamento de Marx, atribuído por
Louis Althusser, é apenas uma invenção oportunista para selecionar certos
textos de Marx e apresentar mais uma deformação de suas concepções. Foi Althusser,
nos anos 1960, o responsável por essa divisão. Foi nessa época que brotaram
duas leituras que aceitavam esse suposto “corte epistemológico”, como
concepções distintas e até opostas. Para uns, a ideia de separação do
pensamento de Marx era útil para defender o humanista e teórico da alienação em
detrimento do radical e teórico do capitalismo, servindo inclusive para
criticar e separar esse pensador do capitalismo estatal da URSS, chamado de
“socialismo real”. Até religiosos e outros intérpretes reforçaram tal
interpretação e também optaram pela escolha do “jovem Marx”.
Por outro lado, com outros interesses, os stalinistas e seus
simpatizantes e semelhantes, a começar pelo próprio Louis Althusser, optaram
pelo “Marx da maturidade”, o “economista”, “cientista”, que tratava da “economia”.
Esse tipo de interpretação era útil para responder as críticas baseadas no
humanismo e na alienação contra o capitalismo estatal e servia para defender
tal regime. Inclusive, alguns chegaram ao absurdo de dizer que “luta de
classes” era coisa de “esquerdistas” (termo usado por esses autores segundo a
concepção do mais famoso e canônico deformador do pensamento de Marx, Lênin,
exposta em seu livro O Esquerdismo, A
Doença Infantil do Comunismo) e o que existia e expressava a concepção
marxista (logo, de acordo com o que pensaria Marx), é uma luta de sistemas: o
sistema socialista (URSS, Leste Europeu, etc., ou seja, os países de
capitalismo estatal, falsamente chamado de socialismo) e o sistema capitalista[6].
O que estas duas interpretações fazem é, de acordo com seus
interesses (e, segundo o materialismo histórico, os interesses são a base das
escolhas intelectuais dos indivíduos, grupos, classes), recortarem o pensamento
de Marx para fazê-lo dizer o que ele não disse, mas que seus deformadores queriam
que ele tivesse dito. Os humanistas querem recuperar um Marx que não trata do
capitalismo e, especialmente, da luta de classes. Reduzem Marx ao humanismo generalista,
abstrato (inclusive voltando mais ainda no seu pensamento, tal como a retomada
do texto sobre a Questão Judaica) e
evitam a necessidade da revolução proletária e de uma classe revolucionária.
Regridem ao “socialismo sentimental” que o próprio Marx combateu (já no seu período
de juventude, como se vê no filme). Os economicistas (althusserianos,
stalinistas e outros) querem evitar a discussão sobre alienação e luta de
classes e se refugiar na economia, interpretada não como o próprio “Marx da
maturidade” fez, mas sob forma fetichista[7].
Tanto é que muitos vão trocar “sociedade capitalista” (ou burguesa) por
“sistema capitalista”. A palavra-fetiche “sistema”, na moda nos anos 1950 e
1960 com a hegemonia do paradigma reprodutivista (funcionalismo,
estruturalismo, teoria dos sistemas, etc.) apenas mostra que é preciso
interpretar os intérpretes e que toda interpretação é produzida social e
historicamente, estando perpassadas por interesses e vinculadas ao momento
histórico em que são produzidas.
O filme, no entanto, não mostra essa concepção, pelo menos
não explicitamente. Marx aparece no filme como um indivíduo com sua
personalidade (a sua singularidade psíquica) e revela sua coragem e
criticidade. A coragem de Marx como indivíduo é perceptível em toda sua
história de vida e suas ações e decisões. No filme, isso aparece ao mostrar a
sua expulsão da Alemanha, França e Bélgica. Sem dúvida, a sua opção intelectual
(começou fazendo direito, por influência do pai, e depois passou para
filosofia), o seu abandono da continuidade de pertencimento de classe,
antecederam esse processo. A expulsão dos diversos países, por se recusar a se
calar diante das questões de sua época, mostra a sua coragem.
Aqui temos a relação entre um indivíduo revolucionário e a
coragem. Não é possível ser revolucionário sendo covarde, sendo medroso
(CARLTON, 2014). No entanto, um outro elemento é que não é possível ser um
indivíduo revolucionário sendo alguém que prioriza os seus interesses pessoais.
Todos os indivíduos possuem interesses pessoais e todos buscam satisfazê-los.
No entanto, poucos estão dispostos a sacrificar alguns destes interesses pessoais
por uma causa coletiva ou pela transformação social. A sociedade capitalista
encontra nos interesses pessoais uma fonte de corrupção e cooptação de
indivíduos. É isso que explica o fato de inúmeros intelectuais sacrificarem o
seu compromisso com a verdade para garantir a satisfação de seus interesses
pessoais (dinheiro, reconhecimento, etc.). Esse não era o caso de Marx, que fez
justamente o contrário, sacrificou seus interesses pessoais pela luta pela
transformação social e pelo seu compromisso com a verdade.
Isso explica um outro aspecto do indivíduo Karl Marx, que é
sua criticidade. Marx era um crítico radical da sociedade, das ideologias
existentes e das ideias dominantes. A fonte de sua criticidade se encontra no
seu humanismo radical. O filme não mostra o Marx anterior, quando ele era um
humanista generalista e que pode ser lido em suas primeiras obras. O Marx
apresentado no filme é aquele que já havia superado o humanismo generalista (abstrato).
O seu humanismo radical aparece no filme quando Engels afirma que a revolução
proletária liberta toda a humanidade. Marx afirma isso em várias obras[8] e
significa que sua concepção aponta para a emancipação humana, mas esta se
realiza via revolução proletária. Por isso, não há nenhum vínculo com a sociedade
presente, já que sua crítica expressa a sociedade do futuro e os interesses da
classe social do presente que “traz em si o futuro” (MARX e ENGELS, 1988), o
proletariado. É isso que permite a “crítica desapiedada do existente”. E é isso
que se vê em Marx e é demonstrado no filme: que critica a lei de roubo de
madeira[9],
os neohegelianos, os “socialistas sentimentais”, Proudhon, etc.
Esse aspecto essencialmente crítico do pensamento de Marx,
pode parecer, para muitos, “arrogância” ou “autoritarismo”. Na verdade, Marx
acreditava em suas ideias e as defendia e todos os seres humanos que possuem ideias
definidas sobre algo fazem da mesma forma, até o relativista que acredita
piamente e ingenuamente no relativismo como verdade. Somente os hipócritas
afirmam que não consideram suas próprias ideias verdadeiras. E Marx tinha muito
mais motivos para julgar que suas ideias eram verdadeiras do que milhares de
outros. Podemos destacar dois motivos básicos que justificam a sua defesa
enfática de suas ideias. O primeiro motivo seria o compromisso com a
transformação social e com a verdade que ele sempre demonstrou, tal como o
sacrifício dos interesses pessoais, elemento que já abordamos. Ora, qualquer
indivíduo que vê os demais aceitando a mentira ou representações ilusórias da
realidade por causa dos seus interesses pessoais já percebe os limites do
pensamento de tais indivíduos e não só deles, como pode perceber os limites da
própria cultura de uma época como um todo. Na Ideologia Alemã, Marx desmascara as ideologias colocando o que elas
efetivamente são, os seus vínculos com a sociedade, a época, os interesses, as
classes sociais (MARX e ENGELS, 1983)[10].
Se as demais pessoas tendem a aceitar as ideias dominantes e estas expressam
interesses da classe dominante, bem como outros que aceitam e reproduzem
mentiras, então é obvio que a crítica deve ser realizada e de forma radical.
O segundo motivo é sua produção intelectual, fundamentada em
ampla pesquisa e erudição. Marx não somente conhecia profundamente a filosofia
alemã (bem como outras produções filosóficas, a começar da filosofia antiga,
tema de sua tese de doutorado[11]),
a economia política inglesa (embora também de outros países), os socialistas
franceses (dos utopistas até Proudhon), os primeiros antropólogos e
historiadores, bem como até mesmo as ciências naturais e seus “manuscritos
sobre matemática” mostram a amplitude de sua erudição, bem como sua recusa da
especialização intelectual. Ora, se um indivíduo geralmente tem a concepção de
que suas ideias são verdadeiras sem grandes reflexões e pesquisas, então é
obvio que alguém como Marx tivesse muito mais razão para acreditar na
veracidade de suas ideias. E poucos foram aqueles que tentaram refutá-lo[12]
e, na maioria das vezes, nem sequer compreenderam suas concepções. Nesse
sentido, Marx nada tinha de arrogância ou autoritarismo. O que se vê no filme é
um indivíduo enérgico em suas posições e que é algo exigido na luta pela
libertação humana.
O filme apresenta também o indivíduo Marx como um ser humano
em sua totalidade e não apenas como “intelectual” ou “militante”, como nas
concepções fetichistas. Assim, como qualquer outra pessoa, ele brinca, conversa
com amigos, bebe, passa mal, convive com a família, etc.[13]
Sem dúvida, alguns destes aspectos poderiam ter sido evitados no filme, mas sua
inserção ocorreu provavelmente para mostrar o indivíduo em sua totalidade e
maior dinamicidade ao filme.
O Pensamento de Karl Marx
O filme começa com citando trechos do texto de Marx sobre a
Lei do roubo de madeira[14],
texto que segundo ele mesmo, o fez se preocupar com as “questões materiais”
(MARX, 1983a). É o início de suas reflexões que desembocam na constituição do
materialismo histórico. O texto inaugural do materialismo histórico é Introdução à crítica da filosofia do direito
de Hegel. Esse texto é constituído a partir das discussões e leituras que
Marx realiza e que no filme aponta para o seu contato com Engels e com a
leitura de Proudhon. Engels (1988) contribuiu com seu texto sobre A Situação da Classe Trabalhadora na
Inglaterra, obra elogiada por Marx, e seu breve artigo sobre “Esboço de uma Crítica da Economia Política”
(1978)[15].
Nesse momento, Marx está constituindo as bases do materialismo histórico, mas
antes disso já tinha toda uma compreensão da dialética hegeliana e o
materialismo feuerbachiano, bem como de diversos filósofos e com alguns
socialistas franceses. Nesse contexto, ele amplia sua leitura dos socialistas
franceses e inicia suas pesquisas sobre economia política.
O filme não mostra o Marx anterior, que era um humanista generalista,
tal como aqueles que ele combaterá posteriormente. A preocupação fundamental em
Marx é a emancipação humana e isto permanece durante toda a sua vida, mas antes
ele não identificava como esse processo ocorreria e, assim como os humanistas generalistas
(os filantropos, socialistas “sentimentais”, etc.), considerava que isso seria
tarefa da humanidade, de forma indiferenciada. No entanto, a realidade parecia
desmentir isso, pois os conflitos de classes, tal como se vê nas leis sobre
roubo de madeira, promove um aprofundamento que tem nas obras de Engels e
Proudhon um primeiro momento de desenvolvimento da percepção luta de classes e
do significado do proletariado. O humanismo generalista/abstrato se torna
concreto, fundado nas relações sociais concretas, a partir da dinâmica
histórica que mostra classes sociais com interesses antagônicos.
Assim, o filme mostra apenas o momento em que ele torna-se
um humanista radical e fundador do materialismo histórico e começa a
desenvolver sua nova concepção. O roubo de madeira e sua punição, tal como nos
trechos mostrados no filme, já mostra sua nova preocupação. Depois ele vai
escrever a Crítica da Filosofia do
Direito de Hegel[16]
e a introdução desta[17],
um texto posterior de dez páginas, que manifesta a primeira versão do seu humanismo
radical.
Sem dúvida, o filme deixa de lado uma obra fundamental desse
período: Os Manuscritos de Paris
(Marx, 1983b)[18],
também conhecido como Manuscritos
Econômico-Filosóficos ou Manuscritos
de 1844, sendo que nenhum desses títulos foi criado por Marx. Esta obra é
fundamental não apenas para compreender a evolução intelectual de Marx, mas
também para entender o conceito de alienação e seu humanismo, bem como para
entender a constituição do materialismo histórico, pois é onde aborda a
economia política pela primeira vez e aponta para a necessidade de tratar das
relações sociais concretas e o antagonismo dos interesses de classe[19].
É nesse contexto que podemos entender a exposição do
pensamento de Marx no universo ficcional do filme. Um elemento que se destaca é
sua criticidade e radicalidade e por isso o seu enfrentamento com as diversas
tendências socialistas de sua época, que vai culminar com a adoção de um nome
que diferenciava o que ele defendia dos demais: comunismo.
A ideia que será fundamental em todo o pensamento de Marx é
a de que “o motor da história” é a luta de classes e de que, na sociedade
capitalista, se formou as condições de possibilidade do comunismo, através do
proletariado, agente da emancipação humana. É justamente essa ideia de luta de
classes e do proletariado como classe revolucionária que é a base da crítica de
Marx ao socialismo utópico, sentimental, Proudhon, entre outros. Os embates são
mostrados no filme, culminando com a sua participação na Liga dos Justos e na
Liga dos Comunistas, até a elaboração do Manifesto
Comunista.
Nesse contexto, o filme prioriza o rompimento com Proudhon e
a atuação de Marx e Engels na Liga dos Comunistas. Desde os embates com
Proudhon, incluindo suas fragilidades intelectuais[20],
até a difícil entrada de Marx e Engels na Liga dos Justos e suas divergências
no seu interior, chegando até a mudança do nome desta para Liga dos Comunistas,
o filme focaliza os conflitos e debates no interior do movimento socialista
nascente. Proudhon era o grande nome do pensamento socialista da época e por
isso sua importância para o futuro do movimento, especialmente se ultrapassasse
seus limites. A intenção de Marx era a de promover uma maior integração dele
com o movimento socialista e levá-lo a superar seus equívocos. Isso, no
entanto, não se concretizou, pois Proudhon se recusou tanto a avançar
intelectualmente (ficando preso em suas concepções, por mais que fossem
criticadas e sem ter condições de responder) quanto politicamente, ao não querer
aderir ao trabalho coletivo proposto por Marx[21].
A influência de Proudhon no movimento socialista era evidente e os seus
equívocos eram mais nocivos ainda por causa disso. Assim surge A Miséria da Filosofia, obra em que Marx
demonstra os equívocos metodológicos e “econômicos” de Proudhon e marca o
início do fim da hegemonia deste no movimento socialista.
Um dos elementos que se destaca no filme é a luta política
de Marx. Desde sua produção jornalística e intelectual até sua inserção na Liga
dos Justos e suas disputas internas, até a redação do Manifesto Comunista. Um
dos primeiros embates de Marx é contra o chamado “socialismo sentimental”. A
ideia de que todos os seres humanos são irmãos, uma fraternidade universal, é
combatida por Marx enfaticamente. O socialismo utópico trazia esse elemento que
era produto, como mais tarde Marx vai colocar no Manifesto Comunista e Engels
no seu texto sobre essa tendência, do incipiente desenvolvimento do movimento
operário. O movimento operário precisaria se fortalecer para superar o utopismo[22].
O seu embate com essas concepções incipientes de um movimento operário
incipiente pode ser vista no filme em sua polêmica com Proudhon, com Wetling,
entre outros. As ideias de “felicidade do povo”, “fraternidade”, “justiça”, vistas
de forma abstratificada, deveriam ser substituídas por um saber real,
fundamentado e embasado na realidade. O processo de transformação passa a ser
concebido, assim, como luta de classes. Essa não é uma outra ideia que se põe à
ideia anterior e sim uma concepção fundada na experiência histórica, pois, “a
história das sociedades tem sido, até hoje, a história da luta de classes”
(MARX e ENGELS, 1988).
Esse embate de Marx (e Engels) contra o sentimentalismo
ingênuo não somente teve uma importância histórica, como mantém sua atualidade.
Porém, a tragédia do passado é a farsa do presente. A razão da existência do
socialismo sentimental era o desenvolvimento incipiente da luta proletária, mas
hoje, depois de inúmeras lutas e tentativas de revolução, bem como toda uma
produção teórica desenvolvida, a começar pelas obras de Marx, é apenas produto
da força da hegemonia burguesa sobre a maioria da população e das tendências
oposicionistas. O retorno do sentimentalismo, a recusa da teoria, o
irracionalismo, são apenas expressões do novo paradigma hegemônico, o
subjetivismo, que acaba tendo impacto nas tendências oposicionistas. Não deixa
de ser curioso como isso é reproduzido por determinados partidos de esquerda. A
crítica de Marx ao socialismo sentimental mantém sua atualidade, não nas formas
corrompidas existentes nas lutas políticas, mas na influência dessas sobre o
conjunto do movimento. Os partidos de esquerda são hoje a porta de entrada das
ideologias burguesas nas lutas políticas na contemporaneidade. Os modismos
contemporâneos, no entanto, são apenas mais um sinal da barbárie cultural
capitalista que marca um retrocesso civilizacional que acompanha o
desenvolvimento da sociedade moderna, que avança no sentido da decomposição.
A relação com Proudhon é apresentada em toda sua
complexidade. Ao contrário das simplificações, o filme consegue mostrar que
Marx mantinha uma posição crítica em relação a Proudhon, embora reconhecesse
alguns méritos em sua obra mais importante, O
que é a Propriedade? Proudhon era um escritor prolífico e mais renomado
socialista francês da época, e por isso tinha uma importância estratégica no
movimento socialista. Nesse sentido, Marx tenta se aproximar de Proudhon e
tenta fazê-lo avançar. No entanto, Proudhon tinha determinados limites intelectuais,
especialmente no âmbito da compreensão do capitalismo (“economia”) e no que se
refere ao método, dois elementos inseparáveis. Marx realiza algumas críticas,
mas é com a publicação da obra A
Filosofia da Miséria, que ocorre o processo de ruptura, que se concretiza
com a publicação de A Miséria da
Filosofia. A cena em que, quando Marx faz um discurso criticando Proudhon e
uma operária diz que “Proudhon é um grande homem” e ele concorda complementando
“mas não é um grande economista”, sintetiza o significado da crítica de Marx.
O filme traz também um elemento que muitos desconhecem na
biografia de Marx, que é sua atuação na Liga dos Justos, posteriormente
denominada Liga dos Comunistas[23].
A difícil entrada na Liga dos Justos e os embates internos posteriores, com a
sua transformação em Liga dos Comunistas, produto da luta interna e avanço da
consciência no seu interior graças às intervenções de Marx e Engels. O lema da
fraternidade é substituído pelo lema da luta de classes. Uma nova etapa emerge para
esta organização e para o movimento operário.
Isso culmina com a redação do Manifesto Comunista. O filme
mostra a encomenda da Liga dos Comunistas de um manifesto e elementos do seu
processo de produção. As dificuldades de Marx, o cansaço que ele alega, entre
outros elementos, fornecem o pano de fundo do texto que se tornou um manifesto
do movimento operário. Neste contexto, o nome “comunismo” emerge para
diferenciar a posição de Marx das demais tendências socialistas da época. O
embate que gerou a mudança do nome de Liga dos Justos para Liga dos Comunistas
foi um primeiro momento[24].
O Manifesto Comunista é um texto-síntese e programático que expressava o mais
alto grau de consciência revolucionária da perspectiva do proletariado. A
história passa a ser vista com sendo da luta de classes, o proletariado é
apresentado como a classe revolucionária, bem como o desenvolvimento da
sociedade moderna, suas tendências e contradições, assim como a crítica das
tendências socialistas e um projeto de revolução social. Nesse momento, “o
espectro do comunismo ronda a Europa”.
Assim, o filme tem outro mérito que é mostrar o processo de
formação do pensamento de Karl Marx e isso é algo que contribui com a superação
das leituras descontextualizadas e que não percebem a evolução intelectual de
um pensador. A teoria do mais-valor, por exemplo, será constituída depois desse
período e, por conseguinte, o elemento fundamental que caracteriza o
proletariado ainda está ausente no Manifesto Comunista. Mas o filme mostra o
seu contato inicial do Engels e, depois disso, com a economia política inglesa,
entre outros elementos que ajudam a compreender a evolução intelectual de Marx.
Considerações Finais
Assim, o filme O Jovem
Karl Marx, é uma excelente obra cinematográfica que, sem dúvida, ajudará na
divulgação e compreensão do pensamento do teórico revolucionário que se tornou
a maior referência intelectual para todos que querem transformar o mundo. O
pensador mais deformado da história do pensamento da humanidade e muito mal
compreendido, ganha um retrato relativamente fiel de sua evolução política e
intelectual. O filme também traz uma lição para todo militante: ser
revolucionário pressupõe coragem, radicalidade e criticidade. Nesse sentido, é
um filme que deve ser assistido, debatido e se tornar mais um material a ser
utilizado na luta cultural por uma sociedade radicalmente diferente.
[2]
Isso pode ser notado, por exemplo, quando Marx diz para Bakunin que não é
anarquista, afirmação que não poderia ter sido dita, pois o anarquismo vai ser
reconhecido como tendência política (e Bakunin como seu representante) no
futuro, nos embates na AIT (Associação Internacional dos Trabalhadores). Da
mesma forma, quando afirma que o Manifesto
Comunista é de um “partido ainda não existente”, é outro anacronismo, pois
o termo “partido” tem o significado de posição política e os partidos políticos
propriamente ditos vão surgir algumas décadas depois. Outro deslize é quando
algumas frases do Manifesto Comunista
são citadas, pulando trechos e permitindo, para quem não conhece a obra de
Marx, uma interpretação equivocada do que ele disse. O uso do termo “sistema” é
outro caso, pois Marx usava “sociedade” e não “sistema”. Esses anacronismos e
deslizes, no entanto, não chegam a comprometer o filme, que mantém, de forma
surpreendente, uma fidelidade ao pensamento de Marx.
[3]
Há, inclusive, algumas cenas do filme que visam, justamente, a torná-lo mais
dinâmico, como, por exemplo, o pesadelo de Marx, a fuga da polícia francesa de
Marx e Engels, etc. Obviamente que, para pessoas que desconhecem Marx, sua
biografia e sua história, ou que não tem afinidade política com ele ou
informações sobre o contexto histórico, a compreensão de certas passagens e a
atratividade tende a ser menor.
[4] Peck
produziu outros filmes como, por exemplo, “Eu
Não Sou Seu Negro”, que tematiza a questão racial.
[7] A
concepção de Marx tem como centro o modo de produção (que, nas sociedades
classistas, são relações de classes, luta de classes) e ele mesmo já criticava
o que denominou “reificação das relações de produção” e forças produtivas.
Sobre isso, veja: Viana (2007).
[8]Manuscritos de Paris, Manifesto Comunista,
Ideologia Alemã.
[9]
Muitos, seguindo a distinção jurídica entre furto e roubo, traduzem o texto de
Marx como “furto”. No entanto, o termo alemão Diebstahl pode ser traduzido sob as duas formas, embora o uso mais
geral para traduzir furto seja Raub.
Independente disso, o termo roubo é mais utilizado e a concepção juridicista
pouco acrescenta à compreensão dos fenômenos sociais. Preferimos traduzir por
roubo, por seu uso mais antigo nas traduções, de uso corrente na linguagem
cotidiana e por considerar que tal termo expressa toda e qualquer apropriação
de bens pertencentes a outros, sendo que o termo furto seria aplicado ao roubo
sem uso de violência e assalto para o roubo no qual há o uso da violência (pois
a distinção jurídica entre furto e roubo é exatamente essa, sendo que o
primeiro seria sem uso da violência e o segundo com uso da mesma).
[10]
Segundo dizem alguns, baseando-se na correspondência entre Marx e Engels, este
último teria escrito apenas seis páginas do livro. A colaboração com Engels em “A Sagrada Família” (1979) não é
coautoria, pois cada capítulo tem uma autoria determinada de um dos dois.
[11]A Filosofia da Natureza em Demócrito e
Epicuro (MARX, 1978).
[12]
Não se trata aqui das pseudocríticas e sim de crítica que é fundamentada. As
diversas formas de pseudocrítica, como ataques pessoais, mentiras,
simplificações grosseiras e deformações, decontextualização, etc. foram
produzidas em grande quantidade.
[13]
Somente os ingênuos pensam que os grandes pensadores ou revolucionários não
possuem problemas diversos, emoções, fraquezas, variação de humor, puerilidade,
etc. Marx é como qualquer outro grande pensador, ou seja, um ser humano, com
todas as implicações disto e o filme mostra parte disso e assim ajuda os
incautos a perceberem algo relativamente óbvio.
[14]
Artigo publicado em A Gazeta Renana, em
cinco partes, que será, segundo o filme, o estopim para sua expulsão da
Alemanha e fechamento da revista. Nesse mesmo período, Marx vai escrever um
conjunto de textos sobre liberdade de imprensa (1980).
[15] O
grande mérito deste texto é ter colocado que as chamadas “categorias
econômicas” (conceitos produzidos pela ciência econômica para expressar o
processo de produção e distribuição das riquezas) são históricas. Isso será
retomado e desenvolvido por Marx, especialmente em A Miséria da Filosofia (1989).
[16]
Trata-se de longo artigo publicado em A Nova Gazeta Renana e que muito tempo
depois será publicado como livro por algumas editoras (MARX, 1978).
[17]
Um pequeno artigo publicado sob diversas formas, inclusive como livro (MARX,
1968), sendo que sua publicação inicial foi também em A Nova Gazeta Renana.
[18]
Alguns poderiam dizer que seria melhor citar a tradução da editora Boitempo. No
entanto, trata-se de um mito a afirmação de que as traduções dessa editora
sejam melhores do que as demais. Inclusive, algumas são evidentemente piores do
que outras que já são problemáticas. Esse é o caso da tradução dos Manuscritos Econômico-filosóficos, que é
uma deformação da obra e, mais explicitamente, do conceito de alienação (que é
transformada, idealisticamente, em “estranhamento”). Aliás, no filme Proudhon
afirma que Grün estava traduzindo os Anuários Franco-Alemães (ou Anais
Franco-Alemães), e Marx retoma o ditado (“tradução, traição”) para dizer que
ele deve estar “traindo” a publicação e o mesmo se faz abundantemente com Marx,
tal como a Editora Boitempo.
[19]
Há um trecho no qual ele está lendo os economistas ingleses, após indicação de
Engels, que pode ser interpretado como leitura que desembocaria em tal obra,
mas como não há referência no filme, então isso é mera suposição.
[20] O
questionamento da afirmação de Proudhon segundo a qual “a propriedade é um
roubo” constitui não só um momento do filme em que se esclarece as divergências
entre ambos e suas motivações, como também permite criar uma atratividade no
filme, ao mostrar a redundância da concepção proudhoniana, o que reaparece na
questão do subtítulo do livro A Sagrada
Família, “crítica da crítica crítica”, e no fato de Marx defender Proudhon
contra os neohegelianos, que ganha um efeito de comicidade com o questionamento
de Bakunin.
[21]
Sobre a relação entre Marx e Proudhon, veja-se: Motta (1981). O texto de Motta
aponta para o elemento de que a crítica de Marx em relação a Proudhon é apenas
no âmbito “econômico” (e no filme há cenas sobre isso, quanto trata do conceito
de propriedade ou afirma que Proudhon “não é um grande economista”) e não
político (o federalismo que apontaria para a “autogestão”). Sem dúvida, a
crítica de Marx a Proudhon é fundamentalmente no que diz respeito à sua
concepção de “economia” e, ao mesmo tempo, no que se refere ao método, pois
Proudhon confunde ideias e realidade, o que é distante tanto do materialismo
histórico quanto do método dialético. No plano político, Marx não realizou
nenhuma crítica a Proudhon, mas havia algumas divergências de pormenores (ação
política, federalismo, etc.), mas não tratou delas, já que o objetivo era, pelo
menos inicialmente, integrar as distintas concepções numa ação conjunta. Marx
também considerou as contribuições de Proudhon, especialmente por chamar
atenção para o significado do proletariado (apesar de suas imprecisões e
confusão a respeito), não apenas na Sagrada
Família, mas também posteriormente.
[22]
Não se deve confundir a crítica do utopismo com a recusa de apresentar um
projeto de sociedade. O que Marx criticava no utopismo eram os planos
detalhados dos socialistas utópicos (como Fourier e sua proposta detalhada de
700 falanstérios, por exemplo) e a falta de análise do processo de constituição
da nova sociedade (o socialismo aparecia como produto de planos intelectuais,
da bondade e filantropia, etc.). Isso não tem nada a ver com a recusa de pensar
a sociedade comunista e ele próprio fez várias considerações sobre a sociedade
futura, partindo tanto do vislumbre racional que permite projeções para o
futuro quanto da análise das experiências históricas, como ele fez no caso da
primeira experiência de revolução proletária, a Comuna de Paris (VIANA, 2017).
[23]
Engels escreveu um breve texto sobre a história da Liga dos Comunistas,
publicado no Brasil como anexo ao Manifesto Comunista em uma de suas edições
(MARX e ENGELS, 1988).
[24]
No futuro, a palavra “comunismo” será substituída nos partidos pseudomarxistas
por “social-democracia”, termo que o próprio Marx criticará (e que ele usava
justamente para denominar os setores “pequeno-burgueses” nas lutas de classes).
Posteriormente, a crise e ruptura no interior da social-democracia vai gerar o
retorno da palavra “comunismo”, numa versão deformada (bolchevista) e numa
versão coerente com a perspectiva do proletariado e com o pensamento de Marx (o
chamado “Comunismo de Conselhos”).
As produções bibliográficas e as análises no campo da historiografia
cinematográfica de maneira geral apresentam inúmeras contradições,
superficialidades e incoerências. As inúmeras obras específicas sobre o cinema
apresentam problemas conceituais e teórico-metodológicos e por isso não abarcam
a realidade concreta, pois muitas vezes as análises são descontextualizadas,
sendo alheias ao momento histórico e realidade social. Estas análises simplistas
partem de uma visão de mundo limitada, pois procuram analisar a realidade
social de forma fragmentada.
No interior do campo de estudo das Ciências Humanas, existe uma limitação
conservadora que dá pouca importância à contribuição histórico-social das
imagens. Este fato explica-se pelo pouco avanço das análises críticas e pelo
limitado e inadequado tratamento metodológico no campo cinematográfico. Em
outras palavras, as diversas obras bibliográficas que se dedicaram a estudar o
cinema não procuraram romper com o superficialismo, com a linguagem técnica, com
a análise anacrônica e a-histórica. Neste sentido, o cinema foi, em muitos
momentos, compreendido como uma criação artística individual tal como
defenderam diversos cineastas da historiografia cinematográfica, ou da chamada
política dos autores, dentre eles, Truffaut, Chabrond, Godard.
Mas como analisar o cinema? Como romper com o tratamento superficial e
limitado? De que forma a concepção materialista da história possibilita a
superação da historiografia ideológica cinematográfica desvinculada da realidade
social? Qual é o papel da crítica social com relação à historiografia
cinematográfica tradicional?
Estas e outras questões instigantes de extrema relevância são fatores que
inquietarão o leitor no decorrer deste livro. Este não é um livro qualquer, é
uma obra diferenciada, pois a perspectiva analítica do autor procura romper e
ir além das limitações existentes na historiografia tradicional.
A abordagem marxista do cinema é a o ponto de partida do autor. Nildo
Viana utiliza o materialismo histórico para analisar a realidade social de
forma totalizante e não de forma fragmentária comumente utilizada na
historiografia tradicional. Uma questão de extrema relevância nesta obra é a
perspectiva crítica do autor com relação à influência da concepção marxista-leninista
em inúmeras teses sobre a obra de arte. Os pseudomarxistas partiram da teoria
do reflexo de Lênin para conceberem as suas ideologias cinematográficas, tal
como é o caso, por exemplo, de diversos cineastas russos: Eisenstein, Vertov,
dentre outros.
Para o autor, “as ideologias cinematográficas nascem com a própria origem
do cinema”. Uma vez que o cinema se desenvolve tecnologicamente, emerge do seu
interior diversas teses tecnicistas, metódicas e formalistas, que são produzidas
pelos agentes envolvidos no processo da produção cinematográfica.
Mas quem são estes agentes que elaboram o discurso ideológico
“competente” da análise cinematográfica? Para Nildo Viana “são os agentes
envolvidos no processo de produção e reprodução de determinada forma artística,
que criam o valor da obra de arte...”. Além do discurso competente
materializado na linguagem tecnicista e elitista, os ideólogos do cinema se
auto-intitulam como pseudo-intelectuais pertencentes a um universo intelectual
restrito e seleto para poucos membros que dominam a linguagem técnica e teórica
da cinematografia. Neste sentido, os ideólogos partem de uma linguagem
elitista, egoística, reforçando e criando uma separação preconceituosa entre
aqueles que são os detentores do conhecimento cinematográfico e os “ignorantes”
não entendidos.
A questão do fetichismo no cinema é abordada de forma inovadora nesta
obra. A perspectiva crítica do autor visa desmistificar e apontar as limitações
teórico-metodológicas da ideologia fetichista criada em torno da produção
cinematográfica pelos ideólogos conservadores da historiografia cinematográfica
tradicional. O fetichismo tem diversas conseqüências, dentre elas a idolatria
criada em torno da produção cinematográfica, que coloca o cinema num patamar
elevado e grandioso, bem como a reprodução dos valores dominantes que são
produzidos pelos agentes de produção. Ambos aspectos são analisados de forma
coerente nesta obra.
Uma produção fílmica é uma produção social e coletiva, portanto, esta
produção não está dissociada das relações sociais. O filme reproduz valores e
ideologemas que atingirão de forma direta ou indireta o público que o assiste.
Já que a produção fílmica é uma produção coletiva, ela é marcada pela luta de
classes, pelos antagonismos divergentes no momento da produção do filme, pois
os agentes que o produzem possuem perspectivas ideológicas diferenciadas.
Viana é enfático na sua crítica com relação ao fetichismo do cinema,
pois, para ele, “o filme é uma produção social”, “nada tem de sublime e os
produtores nada têm de genial, são seres humanos comuns...”. As diferenças
entre as produções fílmicas consistem no capital cultural cumulativo de um
diretor para outro, pois, alguns cineastas além de possuírem o capital cultural
acumulado devido a sua condição de vida, possuem o capital cinematográfico que
possibilita uma produção fílmica mais estruturada do que outras.
As questões do fetichismo no
cinema e do capital cinematográfico estão diretamente relacionadas à
perspectiva marxista enfatizada pelo autor no decorrer da obra. A preocupação
de Viana não é fazer um revisionismo teórico-crítico simplista da
historiografia cinematográfica. Esta obra vai além, pois ela aponta os limites
dos pseudomarxistas indo ao cerne do problema que muitas vezes está relacionado
à mera descritividade, a linguagem técnica e superficial das produções
cinematográficas. O materialismo histórico é um recurso metodológico
fundamental para a compreensão aprofundada da história social do cinema, sendo
assim, ele possibilita um rompimento com o fetichismo, com a ideologia
cinematográfica criada pelos seus agentes de produção. A ideologia
cinematográfica é perpassada por um conjunto de valores, construídos
socialmente pelos ideólogos desde o momento em que o cinema foi criado.
O materialismo histórico procura compreender o cinema a partir das
relações sociais em que ele foi produzido, pois o cinema é constituído
socialmente. Neste sentido, a perspectiva marxista vai além das concepções
fragmentárias que procuram isolar o cinema da realidade social e histórica.
A aplicabilidade da análise marxista é realizada pelo autor ao retratar o
significado original do expressionismo alemão. Neste livro Viana demonstra as
deformações, as incoerências e o tratamento equivocado dos ideólogos que
abordaram o expressionismo, dentre eles, Kracauer (1988), Eisner (2002), entre
outros. A abordagem de Viana sobre este período específico do expressionismo
alemão é inovadora, pois ele situa este período contextualizando-o num momento
histórico-social marcado pela ascensão das lutas operárias na Alemanha. Esta
obra possui uma escrita clara direcionada não apenas para um público específico
elitista e intelectualizado, pois é justamente este fetichismo ideológico que o
autor procura superar.
O presente livro é um marco no que diz respeito à abordagem marxista da
história do cinema, pois ele possui diversas concepções inovadoras que ainda
não haviam sido desenvolvidas dentro da historiografia cinematográfica. A
riqueza da escrita e do tratamento teórico-metodológico desenvolvido pelo autor
é um convite para todos aqueles que desejam aprofundarem o seu conhecimento no
campo da historiografia cinematográfica a partir de uma perspectiva crítica
marxista revolucionária. A concepção marxista compreende a produção fílmica
como uma criação coletiva desenvolvida no conjunto das relações sociais e neste
sentido esta obra propicia uma compreensão aprofundada e pioneira no que se
refere ao tratamento metodológico adequado para a análise da produção
cinematográfica.
Jean
Isídio dos Santos é Professor da Universidade Estadual de Goiás.
O RUPTURA - ESPAÇO CULTURAL e o GPDS (Grupo de Pesquisa Dialética e Sociedade), da UFG, promovem o minicurso "O Faroeste - O Filme como Manifestação do Social", nos dias 10, 17, 24 de agosto. Minicurso: O Faroeste - O Filme como Manifestação do Social. Ministrante: Dr. Nildo Viana/UFG. Promoção: Ruptura - Espaço Cultural e GPDS/UFG. Carga Horária: 16 horas. Data: [Quinta-feira] 10, 17, 24 de Agosto. Horário: 19:00 - 22:30. Local: Ruptura - Espaço Cultural. Valor da Inscrição: R$ 20,00* Período de Inscrição: Até dia 06 de agosto. Número de vagas: 30. Inscrição: fazer pré-inscrição para ver se tem vaga e, depois da confirmação de vaga, enviar comprovante de pagamento, nome completo, instituição de estudo ou trabalho, para o email locusincricoes@gmail.com *A taxa de inscrição deve ser realizada via depósito ou transferência para a seguinte conta:
Caixa Econômica Federal Agência: 1575 CC: 49398-0 André de Melo Santos
APRESENTAÇÃO
O Faroeste sempre foi considerado um gênero menor e inferior dentro da
produção cinematográfica. Ele, inclusive em seu período considerado clássico,
na segunda metade do século XX, foi recusado por todas as classes sociais e sua
comercialização e divulgação foi devido ao fato da indústria cinematográfica
vender, na época, pacotes que ao lado dos filmes de sucesso incluíam os
chamados “western” (PROKOP, 1986).
Porém, o faroeste sobreviveu e se tornou um sucesso a partir dos anos
50-60 e foi reforçado principalmente com a vertente mais fantástica expressa no
chamado “western-spaghetti”, o
faroeste italiano. Os filmes dirigidos por Sérgio Leone se tornaram verdadeiros
clássicos do cinema, bem como os filmes dirigidos por Damiano Damiani, Sérgio
Corbucci, entre outros. Porém, junto com o sucesso vem a produção mercantil e
em série, e as cópias mal feitas invadiram o mercado e a violência gratuita
substituiu o contexto social e político das produções anteriores, fazendo o
faroeste italiano cair em descrédito.
Já no final dos anos 1950, André Bazin, considerado um dos principais
teóricos do cinema, começou a recuperar o faroeste como objeto de estudo.
Através de seu livro O Que é o Cinema?,
no qual dedicou um capítulo exclusivo ao faroeste, ressaltando suas qualidades,
tornou este gênero cinematográfico digno de estudos e pesquisas, tal como a
obra posterior de Rieupeyrout, que retoma o título do capítulo do livro de
Bazin e é prefaciado por este. A partir daí, alguns clássicos, como filmes de
John Ford e outros cineastas, passaram a receber estudos e artigos da crítica
cinematográfica. Algumas outras obras foram produzidas sobre o gênero faroeste.
Porém, nestes estudos o foco é ou a história do western ou a descrição,
enquanto que as obras analíticas se limitam ao enredo e em poucos casos
ultrapassa o formalismo. Daí a necessidade de uma sociologia do filme de
faroeste, visando demonstrar que tais obras cinematográficas são produtos
sociais e históricos e, ao mesmo tempo, que elas manifestam o social. O foco do
minicurso “O Faroeste, O Filme como Manifestação do Social” é este segundo
aspecto e que está intimamente entrelaçado com o primeiro aspecto.
A sua relevância reside na busca de compreensão teórica de uma produção cultural
tão distante da realidade contemporânea, ambientado em outra época, e como ela revela
e manifesta as relações sociais da sociedade moderna, o que ajuda a compreender
determinadas obras cinematográficas e a sociedade que a produz.
Além disso, o curso tende a incentivar a discussão teórica sobre o cinema
e seus gêneros, e o faroeste mais especificamente, possibilitando fazer avançar
a pesquisa e o ensino sobre cinema na perspectiva crítica, além de poder
integrar pesquisadores e estudantes. Também contribui para uma percepção mais
ampla do cinema e do faroeste, abrindo espaço para interlocução e
desdobramentos futuros.
Ementa:
Os Gêneros Cinematográficos. O Faroeste e sua especificidade. O gênero
e suas variações. A literatura sobre o faroeste. O filme como reprodução
intencional e inintencional da realidade social. A produção social do filme. Valores,
cultura, ideologemas manifestados no filme. Filme e Valores. Mudanças sociais e
mudanças no faroeste. Faroeste e crítica social.